Fome é tragédia municipal

picture (54)Não devo cansar-me de bater na mesma tecla, mesmo porque os problemas permanecem os mesmos. Na Índia colonial, um missionário desabafou diante da fome do povo: “Os capitalistas europeus seguem a pista da fome como um céu cheio de urubus.” É essa, sim, a grande maldição humana: o homem vivendo e enriquecendo da miséria e da dor do próprio homem. Onde houver doença, fome, miséria e morte – lá estarão outros homens aproveitando-se da infâmia.

Há quem ainda queira discutir a proposta utópica de Lula a respeito de “Fome Zero”. Tem havido o silêncio dos que desanimaram. Mas nunca será tarde para insistir na união nacional contra a tragédia da fome seja onde for, não importa o tempo. Pois a fome tem apenas um único elemento social que a enfrente: a solidariedade. Sociedades individualistas – como as que construímos – não enxergam a fome do outro. Mesmo porque o alimento deixou de ser um ritual mágico e comunitário para se transformar em ato isolado, pessoal, rápido, cujos ícones são os “fast foods” e os fogões microondas.

Qualquer história da comida, da alimentação, da culinária nos conta da revolução social e cultural provocada pelo “cozido”, como se o fogo de Prometeu iluminasse as tribos. Entre o “cru e o cozido” – que Levy Strauss nos deixou como lembrança – tudo aconteceu. Criaram-se comunidades, o fogo se fez lareira e a lareira, lar. Aguardar o cozimento da comida promoveu a união e a solidariedade até mesmo entre os canibais que comiam seus inimigos. Comer, mesmo entre antropófagos, fazia parte do sagrado do ser humano, pois comer é vida. Em todas as religiões, come-se em memória de um deus ou, como na cristã, alimenta-se do corpo do próprio Deus.

Qualquer ser humano com fome é um atentado à dignidade humana, se esta ainda existir. Ver a fome como um problema mundial ou universal é, penso eu, quase que uma abstração. A fome é tribal. Pode ser do meu vizinho, pode estar no meu quarteirão e, se existe, existirá sempre na minha cidade. Logo, a fome é tragédia municipal. Como a saúde, como a educação, como as necessidades básicas. E, por isso, independe de governos estaduais ou federal para ser enfrentada. É simples questão de solidariedade. E de responsabilidade municipal. O individualista, ao comer “fast food”, não vê sequer quem está a seu lado.

Até recentemente, as cidades sabiam resolver os seus próprios problemas. E não se diga que, por terem crescido ou inchado, isso se tornou inviável. A formação de bairros autônomos criou verdadeiras outras cidades numa só cidade. Prefeitos e vereadores – evitando administrações regionais – centralizam o poder para o maior controle político-eleitoral da população. Mas é o povo que tem respostas. Pois a solidariedade é comunitária e, nos bairros, ela se mostra encarnada. Solidariedade oficial, imposta por governos, não existe. Fome e saúde e exigências básicas resolvem-se com a participação do povo. Com solidariedade e espírito comunitário.

O exame do lixo das residências comprova o desperdício, a abundância supérflua que, se repartida, saciaria a fome de milhares de famintos. Às vezes, fica-me a impressão amarga de a vida ser reles imitação do filme, “A Comilança” (La Grande Bouffe), no qual as personagens comem até morrer. É a comilança do grande mundo, mas o homem vive onde tudo é municipal: o desperdício, a fome, a injustiça, o egoísmo e, felizmente, também a solidariedade.

Em recente artigo para Campinas, contei o que vi há algum tempo: caminhões de lixo recolhendo dezenas de sacas de pães de uma padaria, sobras daquele dia. Próximo dali, pessoas esmolavam algo para comer. A solidariedade está apenas adormecida. Quando se redescobrir que a fome é tribal, quando se redescobrir que a saúde pública não pode ser comercializada, renascerá a esperança. Ouçam os “vicentinos”. Eles entendem de fome e dor alheias. Pois pensam com o coração. Bom dia.

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