Ganhar na loteria e falir
Antes mesmo de sair o resultado da Mega Sena, estou nervoso.
Ora, não costumo jogar em loteria. Pois são outros, os meus jogos. E outra, minha loteria. Jogo é questão séria demais para ir-se jogando à toa. Por isso, quando jogo, jogo em jogo sob meu controle, onde eu possa dar as cartas, fazer as regras, ser o croupier, estender o pano verde. Com a Sorte não brinco. Nem com a Fortuna. Nem com o Acaso.
Jogar por jogar, brinco de escrever ficção. A sensação é de imitar os deuses: criar personagens, dar-lhes vida, jogá-los no cenário, ver o que acontece. No jogo da ficção, personagens são como filhos da carne: nascem da gente, mas não obedecem. Aos filhos, damos-lhes apenas a forma. O conteúdo é deles. Tal qual um jogo. Dão-se as cartas, lançam-se os dados. O resultado é loteria, roleta.
Quando o prêmio da Mega Sena ultrapassa os 20 milhões, fico com vontade de jogar, às vezes jogo. Pois 20 milhões dariam, razoavelmente, para conciliar loteria e ficção. É complicadíssimo. Quase todos os jogos – incluindo os de amor – envolvem a Sorte. E sorte é Fortuna, com o seu duplo, Fors. Até Aristóteles ajudou a complicar, ao refletir sobre sorte e acaso. O que é sorte, o que é acaso? Sei lá eu. E não penso mais nisso. Contento-me em ser deus de meus personagens até onde puder. E, sobre eles, lançar a “Sortes Sanctorum” e a “Sortes Diabolorum”, senhor das minhas próprias feitiçarias.
Pensando nos 20 milhões, tive vontade de jogar na Mega Sena. E já estou nervoso. Pois o problema é terrível: já gastei tudo o que vou ganhar antes mesmo de receber o dinheiro. Se eu perder, terei que repetir os falidos do “crash” de 1929, subir ao prédio mais alto e atirar-me de lá. Escolhi o Edifício Georgetta Dias Brasil, o primeiro de nossos edifícios. Se tiver que suicidar-me, fá-lo-ei com “aplomb”. Considero-me cavalheiro. Ainda.
Portanto, joguei, já gastei tudo, compliquei-me. Ora, sei da importância do dinheiro mas não consigo administrá-lo. Tentei aprender até com o Joseph Campbell, um dos anjos bons de minha vida. Com sua genialidade, Campbell colocou em ordem o conflito entre vôo e pé no chão. É uma arte: voar sem sair do chão. Campbell explica que dinheiro é potência aprisionada. A sabedoria está em libertá-la. Há caminhos. O homem, diante de suas decisões, se torna aquilo em que gasta o seu dinheiro: avarento ou esbanjador, acumulador ou distribuidor, mecenas ou prisioneiro de cifrões. E eu, que já gastei o dinheiro da Mega Sena antes de ganhá-lo?
Não tenho saída. Se eu jogar e não for o único vencedor da Mega Sena, estarei falido. Serei preso ou terei que suicidar-me. Não me sobrou um tostão. Comprei tudo o que havia nas livrarias e editoras e nos sebos. E tudo o que se editou de Bach, de Mozart, de Chico Buarque, de Elizeth Cardoso, de Cartola e de Beethoveen. E comprei um sítio para plantar apenas milho de pipoca. Isso, só para mim.
Pois, comprei, também, a Rua do Porto, o Engenho Central, todo o entorno do lago de Santa Rita, o armazém de Chicó, a estação de Tupi, o barracão da Coopersucar na Água Branca e aquele que não sei se é ainda dos Gobbin, na Rua da Glória. Comprei a ponte de Artêmis, o paraíso que me recuso a chamar de Ártemis. E comprei a margem direita do rio e as Ilhas dos Amores e dos Namorados. E a Estrada da Boiada e a pedreira do Bongue e as margens do Tancuã e a escadinha da Teixeirada.
Será uma pena se eu não ganhar os 20 milhões. Pois tudo o que comprei eu embrulharia em papel celofane e presentear Piracicaba ainda no mês do aniversário. Ah! quase esqueci de contar: comprei, também, o pôr-do-sol na curva do rio. Bom dia.