Homens e essência

picture (13)Alguém escreveu que saudade dificulta a esperança. Não creio nisso. É através da saudade, essa vontade de outra vez, que a esperança brota. Tenho, porém, a certeza de que a saudade sufoca. E mata. Morre-se, acho eu, de ausência. De perda em perda, as pessoas esvaziam-se.

Um pensador – não me lembro o nome – entendeu melhor e explicou: a existência de uma coisa é simultaneamente a essência de outra. Um exemplo: a existência da árvore em seu lugar é uma essência da floresta. Sem a árvore, esta será outra. Na árvore, a existência do ramo é uma essência. E a essência da folha é a existência da nervura. E assim vai.

Acontece-nos, a cada um de nós. Em relação aos outros, ao lugar. A vida deixa de ser a mesma a cada perda. E, de quando em quando, sinsto a dimensão de tantas ausências. Que se tornam mais agudas quando me detenho em livros de amigos inesquecíveis. Um deles é o admirável estudo feito por Hélio Morato Krähenbühl sobre a migração e a ascensão social italianas em Piracicaba. O outro, o livro de poesias, “Bagagem avoenga”, de Pedrinho Morato Krähenbühl. A saudade bate. E as ausências aumentaram vazios. A existência deles era parte da essência nossa. Sem ele, alterou-se-nos a essência.

A decadência dos povos se inicia com a perda da memória. E, de minha parte, é esse o meu grande receio em relação a Piracicaba: que, desmemoriada, a cidade perca os rumos. Começa a acontecer. Não se trata, mais e apenas, de identificar, hoje, a nossa gente valorosa, mas de manter viva e respeitosa a memória dos nossos construtores. Há alguns, alegando uma pesquisa qualquer, alguém menosprezou escritos de quem que se assinava “O homem que acha tudo ruim”. O pesquisador – na tristeza de tempos iconoclastas – nem sequer sabia estar-se referindo a Pedro Krähenbühl, um dos patriarcas de nossa terra, dos Krähenbühl que completaram mais de 150 anos de sua chegada a Piracicaba.

Seria tolice minha falar dos Krähenbühl no espaçozinho de uma croniqueta. Mas ausências espicaçam a saudade e aprofundam os vazios. Dr.Noedy, cadê? De Pedrinho – que teria, hoje, mais de 80 anos – ficam-me lembranças de noites boêmias da juventude em São Paulo, as lições que, dele, saboreávamos no Pari Bar, ao lado da Biblioteca Municipal. Um livro que Pedrinho me deu – “Psicanálise e Religião”, de Erich Fromm – avivou os meus então 17 anos. Na dedicatória, parecia haver resquícios de despedida: “o paciente vive o drama que para o médico pode tornar-se um esquema”. Foi em maio de 1958. Em julho, dia 21, Pedro disse-nos adeus. No livro de poemas dele, o último é datado do dia 18, apenas três dias antes da tragédia. Leio lá: “Lucidez é meu pecado, virtude jamais.”

Hélio, por sua vez, deixou-nos contribuições notáveis, incluindo o “Almanaque de Piracicaba de 1955”. Foi um dos organizadores de Brasília como capital federal. Tive a alegria de publicar trechos de sua pesquisa sobre a saga italiana em Piracicaba. E de, na rua do Porto, ver e ouvir Hélio Krähenbühl dizer de suas lembranças, da aventura de tempos heróicos, de lutas políticas, de combates democráticos. Hélio foi-se de Piracicaba e, no entanto, nunca nos deixou.

Na existência desta terra, os Krähenbül são parte da essência. Bom dia.

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