Lembrando a vaca e o brejo

Vaca e o brejoSe a memória do povo se esvai aos poucos e se alguns intelectuais fingem tê-la perdido, não é permitido, ao jornalista, desprezar o que aconteceu, pois é sua fonte de referências. Neste ano político, parte da grande imprensa parece disposta a reviver apenas memórias seletivas, as que interessam, de forma que a verdade passa a ser sonegada.

Ora, ao final do governo de Fernando Henrique Cardoso, o caos havia-se instalado no Brasil. E o próprio José Serra de então – candidato oficial à sucessão, derrotado por Lula – fez o balanço daquele governo após a solicitação de um novo empréstimo ao FMI: “Era preciso, pois a vaca ia indo para o brejo.” A vaca, nesse caso, era o Brasil. E o brejo era aquele buraco negro que, após oito anos de governo de Fernando Henrique, se transformara num país à beira da falência. Por ato falho, por sinceridade inesperada ou apenas por desabafo, José Serra acabou revelando o que muitos sabiam, o que a grande imprensa não dizia e o que o povo ignorava: fomos todos enganados. Serra falava o que Lula depois chamou de “herança maldita.”

Os brasileiros, indo às urnas para eleger seus governantes, não sabiam o que era o FMI, o Banco Mundial, “Consenso de Washington”, neoliberalismo. No entanto, sentiam na carne e nos ossos o desastre de uma política e de uma filosofia econômicas que os seus próprios autores – como a elite econômica dos Estados Unidos – confessaram ter fracassado. O mundo de prosperidade – prometido com a privatização em larga escala, com a diminuição do Estado, com a estabilidade da moeda ainda que ao preço da fome e da desgraça de milhões de pessoas – não aconteceu. Ou melhor: aconteceu para as minorias privilegiadas de sempre que se tornaram ainda mais privilegiadas. O neoliberalismo se revelou tão brutal e cruel como o capitalismo selvagem dos primórdios da civilização industrial. O quadro que se via na América do Sul era, guardados os contextos, o mesmo de miséria da Europa Central quando as empresas capitalistas se tornaram maiores do que o Estado.

Quando José Serra – depois de oito anos de governo do qual ele pertenceu – afirmou que “a vaca ia indo para o brejo” estava, na verdade, apenas dizendo que, por se tratar de ano eleitoral, deu-se um jeito de a vaca interromper um pouquinho a sua caminhada ou, então, de se afastar o brejo para um pouco mais longe. O fato, no entanto, é que a vaca existia e caminhava e o brejo estava à espera. Na verdade, o brejo chegara há tempos para a vaca que simbolizava a classe operária, a classe média, os universitários, profissionais liberais, a juventude brasileira. Desmontara-se o Brasil. Fernando Henrique fizera exatamente aquilo que prometera: primeiro, que esquecêssemos do que ele escreveu, que eram escritos exaltando a soberania brasileira e nosso destino como grande nação; depois, que haveria de desmontar, definitivamente, o “Estado Getulista”, como se esse Estado fosse de todo mal, algo pernicioso e responsável pelo nosso atraso e miséria. Fernando Henrique desmontou o “Estado Getulista” – incluindo algumas das principais conquistas brasileiras ao longo da História – e não colocou nada em seu lugar, a não ser o “Estado Entreguista”, de nossas riquezas entregues ao que sempre se chamou – e ainda pode ser chamado – de “sanha internacional”.

Ora, se, oito anos depois – e após o desmonte do Estado, a dívida brasileira multiplicada, milhões de desempregados, a violência anunciando o caos – a mesma vaca continuava indo para o mesmo brejo, seria idiotice coletiva acreditar que as coisas deveriam continuar como estavam. Entre os jornais e jornalistas “oficiais”, estava, naqueles dias, uma voz discordante, voz firme, respeitável, reconhecidamente digna. Foi a de Mino Carta. Que, sem medo e sem compromisso – e sem ser de esquerda ou carbonário – definiu, do alto de sua experiência e independência: “Este governo (o de Fernando Henrique) é o pior de toda a História do Brasil.”

A derrota, então, de José Serra – e, depois, a de Geraldo Alckmin – foi uma reação nacional para que a vaca saísse do brejo. Saiu. Por isso, não se consegue saber qual o interesse em se voltar ao modelo antigo, que o próprio Serra considerou falido e que está indicado para voltar a instalar, devolvendo às forças do mercado todos os poderes e privilégios. A memória brasileira precisa ser reativada. E que não se apeguem tanto ao “mensalão do PT”, pois os do PSDB e DEM mostram que esse cancro tem metástase em nível nacional. Bom dia.

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