Meu adeus às urnas

Votar foi, para mim, um ato realmente sagrado. Desde a primeira vez, em 1960, quando votei para Presidente da República. Eu mal completara 20 anos e o ardor cívico me queimava o peito. Era tanta a paixão pelo Brasil que se construía que, loucamente, resolvi ajudar na edificação de Brasília, a obra-síntese de Juscelino.

Foi a minha viagem inesquecível. Na boléia do caminhão de Ronaldo Gerdes, lá me fui como seu ajudante. Levamos quase uma semana para chegar, rodando por pinguelas, estradas barrentas, vendo um Brasil anêmico, analfabeto, miserável à beira das estradas, morando em palhoças. Tomávamos banho em rios e nos alimentávamos de quando em quando, nos raríssimos e precários postos de combustível ao longo da grande jornada. Nunca, antes, eu me achara tão brasileiro quanto naqueles dias: eu, candango, indo ajudar a construir Brasília.

Onde está, ainda hoje, o Hotel Nacional da capital brasileira, há um pedacinho de parede erguido com minhas mãos de jovenzinho, com o suor de meu rosto iluminado por paixão cívica. Sobrou-me uma foto daquela minha epopéia, à frente do caminhão, barbudo, sujo, mas feliz. Deus sabe como amei este meu país, esta minha cidade.

Votei no Marechal Lott, o “marechal da legalidade” – ele que fizera abortar o golpe que tentara impedir a posse de Juscelino à presidência da República e que, depois, tentou evitar a quartelada militar de 1964. No DOPS, alguns anos depois, investigadores me atazanavam: “Você é comunista vagabundo, votou até no Lott”. Em 1960, era honroso votar no marechal Lott. Quem diria que, depois da quartelada, votar em militar seria uma vergonha? Votar em Lott foi ato de fé, esforço para impedir a aventura enlouquecida em torno de Jânio Quadros. Jânio venceu. E, depois, aconteceu toda a tragédia.

Quando retornaram as eleições diretas para a presidência da República, criei meu ritual que chamei de sagrado e que me foi sagrado: no dia da eleição, eu colocava, no aparelho de som, o Hino Nacional, na Marcha Triunfal de Gottschak. Ouvia-o como que em oração. E, de terno e gravata, com o peito estufado de orgulho, fui votar. E assim continuou ao longo dos anos, já na reabertura democrática que, enfim, se revelou uma farsa.

Posso jurar que nunca – em nenhum momento, em nenhum instante – deixei de votar, recusei-me a fazê-lo. Era meu direito e meu dever. E o fui fazendo, mesmo quando, na realidade, eu votava, quase sempre, não no melhor candidato, mas no que pudesse vir a causar menos danos. Passou a ser assim, nos últimos anos: votar no menos mau, para evitar o pior. Nem quando cheguei aos 70 anos, tive a tentação de deixar de votar. Pensar nisso era-me uma agressão a mim mesmo, à minha consciência cívica. E eu sabia que todo o sistema político-eleitoral estava corrompido por uma grande farsa. A nova democracia era mais maléfica do que a ditadura, pois, nesta, o inimigo era visível, claro. E na farsa dessa falsa democracia não sabemos quem é o pior, pois o mal está oculto.

Perdi – diante da farsa político-eleitoral – interesse até mesmo em votar naqueles que chamamos de exceção à regra, homens decentes e dignos, que existem. Mas são tão poucos que acabam sendo atropelados, massacrados pela horda de corruptos e de aventureiros. Exceções dignas, numa democracia, não valem nada, pois elas deveriam ser a regra. E a regra é a das negociatas e negociações, das cartas marcadas, dos grupos organizados, de novas formas de votos de cabresto. Sinto-me humilhado ao saber que meu voto não terá qualquer importância, nem mesmo como exemplo ou como perseverança. Meu voto, diante de tais estruturas, será o da cumplicidade com uma estrutura corrupta e sórdida.

Ora, aos 72 anos,não tenho nem mais o dever legal de votar. Não há, pois, obrigação alguma. O dever deveria ser-me imposto pela consciência. Mas esta reage, repugnada, exausta, cansada, desesperançada do sistema que não é democrático a não ser como farsa.

Doeu-me, dói ainda. Mas minha consciência me brada que eu seria um palhaço se fosse votar apenas por obrigação legal. Logo, se não sou mais obrigado a participar da grande palhaçada, para que votar em algo que não mais acredito? Foi amarga a decisão, mas aliviadora: não irei votar. Não mais participarei da pantomima de votar no menos mal, no menos ruim. Não há mal maior ou menor. Mal é mal. O que há é aquele que provoca o dano maior e o dano menor. Se sei que votaria em quem provocará danos, que palhaço me transformo em ir votar se a lei já me desobriga de fazê-lo? Doeu. Mas a alma ficou leve: não sou cúmplice de farsas, nem coonesto palhaçadas. Na próxima, quem sabe? E bom dia.

1 comentário

  1. Delza Frare Chamma em 07/10/2012 às 10:54

    Cecílio, muita dor lendo seu desabafo de hoje. Dor em pensar que você sempre engajado em causas sociais e que sempre disseram respeito à liberdade e dignidade do ser humano, não pode, de um momento para outro, ter aberto mão de sua cidadania. O voto é a única arma que temos contra toda e qualquer forma de tirania. Não existe a velha e sacana frase: "Os políticos não prestam" ou a de que "todos os políticos são iguais". Existe sim políticos sérios e é nesses, que temos que votar. Quero apenas lembrá-lo de que a mudança histórica não se faz em apenas uma ou duas gerações. O tempo histórico é lento e dialético. Esperamos 25 anos para podermos votar novamente para agora fazermos o discurso da "maioria silenciosa"? Lembre-se, o nosso grande historiador Eric Hobsbawm morreu com 95 anos acreditando ainda na humanidade. Vardir e Delza

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