Doutor Noedy, para vereador

Ainda bem que ainda existem testemunhas de minha geração, felizmente vivas e lúcidas, que poderão confirmar o que, hoje, parece mentira. Quero contar que assistir a algumas sessões camarárias – antes do golpe militar de 1964 e, ainda, um pouco depois – era um ato cívico. Travavam-se debates de opiniões empolgantes, temas apaixonantes, vereadores digladiando-se intelectual e verbalmente em defesa de suas idéias, propostas. Havia – de verdade e não de brincadeirinha – a bancada da situação e a da oposição. Eram férreas. Mas sabiam se unir quando se colocava em jogo o interesse público, pois a população assim o exigia.

Corrupção? Sim, havia. Sempre houve. Mas era tão mascarada que, quando descoberta, se transformava em vergonha coletiva, sendo o corrupto estigmatizado pelo resto da vida. Ser vereador não era profissão, mas cargo de honra, uma prestação de serviços à comunidade. Pois – pasmem, meus filhos e amigos jovens! – vereador não ganhava nada. Mas recebia o respeito da população. Salário de e para vereador – que se tratava, então, de subsídio – apenas surgiu depois do golpe de 1964, quando, para fingir haver democracia, os militares reabriram o Congresso, deixaram funcionar as Câmaras e Assembléias – criando salários para vereadores, a forma mais objetiva e silenciosa de submetê-los à voz do poder.

Não é novidade alguma um prefeito, um governador, um presidente pretender ter maioria nas casas legislativas. Política é a arte da negociação. Escrevi arte, não negócio. Havia malandros e fracos que, a um estalar de dedos do prefeito, lhe faziam o beija-mão.E, em contraposição, havia bancadas inteiras de vereadores sérios, conscientes que mantinham posições inegociáveis. Os debates eram fascinantes. Quando – apenas para citar um pequeno exemplo – Salgot Castillon e Domingos Aldrovandi se confrontavam na tribuna da Câmara, o povo vibrava, aplaudindo e vaiando, mas mantendo viva a pulsação democrática.

Entre tantas e notáveis personalidades, tenho, para mim, o homem que escolhi como vereador-símbolo de Piracicaba: o doutor e professor Noedy Krahenbuhll Costa. Jurista, juiz de direito que trocou a toga pela advocacia, humanista, especialista em cultura greco-romana, o dr.Noedy foi uma das mais fascinantes personalidades piracicabanas e a sua integridade moral – além da cultura, da honradez – se tornou paradigmática. Ele é, ainda agora, uma das minhas mais pungentes saudades, ausência que não se preencheu. O que aprendi com ele, o que busquei de bom e de honrado nele – isso faz parte de meu mosaico espiritual interior.

O doutor Noedy foi vereador, eleito em 1947, a primeira eleição municipal após a ditadura de Getúlio Vargas. O prefeito eleito tinha sido Luiz Dias Gonzaga. A Câmara Municipal era composta por intelectuais, empresários, comerciantes, professores, homens do povo. O professor e jornalista Acary de Oliveira Mendes, também vereador, apresentou um projeto que buscava alavancar a educação, na reforma e na construção de prédios escolares. O prefeito Gonzaga não queria, ainda com seus cacoetes de coronel da Velha República. E conseguiu o que parecia impossível: convenceu a maioria da Câmara a rejeitar o projeto de Acary. Foi um beija-mão escandaloso.

O doutor Noedy indignou-se. E, tomado de santa fúria, renunciou ao mandato de vereador, bradando para os seus nobres colegas vereadores: “Bando de Panurgos tangidos por um almocreve.” Ninguém entendeu. O que o doutor Noedy fizera fora referir-se a Panurgo, personagem de Rabelais. O personagem, por vingança, atirou um carneiro ao mar e todos os demais carneiros, em atitude suicida, acompanharam o que tinha sido vitimado. Almocreve é o homem que conduz bestas. O prefeito e os demais vereadores somente entenderam depois. Mas Noedy Krahenbuhll Costa já antevira o que, parece, se repetiria décadas depois.

Se o doutor Noedy estivesse vivo e fosse candidato, eu, orgulhosamente, votaria nele. Mas ele morreu. Mas, vivo estivesse, não seria candidato. Bom dia.

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