Moderna versão da fábula

picture (99)Fábula é diferente de lenda. Mas fábula pode tornar-se lenda e lenda, fábula. Acrescentando-se o mito a isso tudo, faz-se a confusão. Que aumenta quando se entende que, quase sempre, o “mytho” é “mutus”, o mito mudo. A questão é mais séria do que se pensa. Mas, como pensar é atividade antiga, isso não tem importância . Aliás, já escrevi também sobre isso. Como a historia da cigarra e da formiga, narrativa de La Fontaine que sempre me incomodou.

Ora, por que tinha, a cigarra, que sofrer tanto? E se ela, cantando, estivesse em serviço, desempenhando uma nobre atividade? La Fontaine escreveu essas histórias em meados do século XVII, entre as delícias da corte francesa, sustentado e mantido por madamas e banqueiros, um feliz cortesão. Ora, encanto-me, ainda hoje, com monsieur Jean de La Fontaine. Mas louvar a formiguinha e esculachar com a cigarra, isso é triste, convenhamos.

Pois bem. Quase ninguém mais se lembra de que, à época de La Fontaine, a economia capitalista florescia, à luz também do protestantismo. Na França, o calvinismo se espalhara e foi enfrentado com fogueiras. Grandes rupturas tinham-se consolidado, um mundo transformado: descobertas no Novo Mundo, a reforma protestante, o renascimento católico, o liberalismo, os “quackers” nos Estados Unidos, por aí foi. E La Fontaine – sabe-se lá se proposital ou casualmente – complicou, ainda mais, a vida de pintores, músicos, dançarinos. A pobre cigarra foi símbolo da boêmia; a formiga, o do trabalho. Hoje, relativamente, em ambos os casos.

Devia-se tentar o meio, o centro. Nem tanto trabalho, nem tanta cantoria. E por que não poderia, a pobre cigarrinha, ganhar o seu sustento cantando? Pergunte-se à Madona, por exemplo, o que ela pensa de ter sido, de ser cigarra. E perguntem ao trabalhador braçal, o que ele sente de ser apenas formiga. Foi o que, certa vez, escrevi, quando um banqueiro tentara dar lições de moral aos brasileiros: “o povo não trabalha, precisa trabalhar.” Mas o homem era apenas dos “bons vivants”, dos precursores do Cacciolla, o banqueiro que nos enganou , fugiu para a Itália e só está preso por descuido.

Doutra feita, um prelado me criticou. Pois eu dissera que, na história da formiga e da cigarra, era preciso ver se o trabalho, na verdade, sempre é dignificante, se não há trabalhos que aviltam. E, em contraposição, se não há cigarras que se dignificam e dignificam a humanidade com sua arte. Minha proposta: a formiga ter seus momentos de cigarra; a cigarra ter momentos de formiga. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Quando a fábula se torna mito, a vida se complica.

Aconteceu, porém, de circular pela internet uma nova versão da visão lírica de La Fontaine. Em plena noite fria de Inverno, em meio a nevascas, a cigarra voltou a bater à porta da formiga. “Entre, entre, aqueça-se junto à lareira.” – convidou a sempre esforçada mas generosa formiguinha. A cigarra recusou, dizendo estar com pressa. Que, na verdade, tinha ido apenas agradecer por tudo o que lhe fizera a formiga e despedir-se: “Sabe? Eu estava cantando numa boate, apareceu um milionário francês que se apaixonou por mim e, agora, estou viajando a Paris para ser amante dele e morar num palácio.”

Pela nova versão, a formiga botou a mão na cinturinha, viu a limusine da cigarra, pediu-lhe fizesse um favor quando chegasse a Paris: “Se você se encontrar com La Fontaine, mande-o para o pqp, falô?” alavras. De alguma forma, talvez seja isso o que o povo tem pensado de tantos candidatos às eleições. Querem trabalhar, querem flautar? Sei lá. E bom dia.

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