Mortes e mistérios no rio

São tantas as mortes estúpidas e trágicas em todo o mundo, tantos os massacres, acidentes, tragédias que as pessoas como que se acostumaram a não mais reagir. O condicionamento é tal que, em se referindo a audiência, o público se interessa e se emociona muito mais por um gatinho preso no fundo do poço do que por uma destruição em massa por incêndios, explosões, bombas.

Há algum tempo, um amigo, com a maior naturalidade, nos contava de que, “pelo constava”, alguém morrera num passeio de barco, nas águas do rio. De repente e sem o perceber, perguntei: afogou-se ou foi engolido pelas águas do rio? Pois Piracicaba e o rio têm mistérios que não podem ser esquecidos. E afogamentos no rio talvez sejam os mais assustadores desses segredos.

Após trágico novembro de 1964 – quando ruiu o Edifício Luiz de Queiroz (Comurba) – o notável dr.Jacob Diehl Neto tentou algumas explicações. É verdade que ele era um dos advogados da companhia, advogado manhoso. Mas, como o diabo, ele sabia das coisas. E, como já se provou, não é por ser diabo que o diabo é sabido, mas por ser velho. O velho dr.Jacob sacou, de seu alforje, alguns segredos de Piracicaba e explicou, sobre a tragédia: “Foi o vulcão que, há milênios, existiu onde está o jardim. Embora extinto, pode ser que tenha soluçado e, então, o prédio ruiu.” – foi o que ele contou, sem que quase ninguém acreditasse. O fato, porém, é que os fantasmas e as ruínas ficaram lá por quase dez anos. Precisou o Lazinho Capellari – que não acreditava nessas coisas – liderar funcionários e, com pá e martelo, demolir os destroços. Mas o medo ficara.

Passeios de bote, de canoa, de bóias, ao longo do rio Piracicaba, precisam de cuidados especiais, especialíssimos, muito mais do que se imagina. Não apenas os de segurança, que se discutem após cada morte: se havia condições, cuidados suficientes. Não se pode esquecer que o rio é o rio. Com sua liturgia. Com seus rituais. Ora, ninguém mais se lembra – antes de passeios de botes, canoas, de bóias – de rezar para Rosa de Jesus, logo abaixo do Salto, oferecendo-lhe pétalas de flores? Rosa de Jesus, a santinha dos negros e dos pobres, foi uma das primeiras médicas de Piracicaba, sem nunca ter conhecido medicina. Morreu e o povo a fez santa, também protetora do rio. Quem vai lá pedir a bênção de Rosa de Jesus? Quem vai desfolhar rosas para que, antes de passeios, cada pétala siga na frente, abrindo caminhos, afastando perigos? Quem?

E a Inhala Seca, quem a procurou no Bongue, pedindo desse sossego durante o passeio? Pois, nas cercanias do Bongue, se alguém desaparecer é porque Inhala Seca o levou. E não adianta mais procurar pelo Nelson Torres que, conhecendo segredos da Inhala Seca, mora há tantos anos no Bongue, vizinho da feiticeira. Não adianta mais perguntar, porque o Nelson Torres, agora e com ajuda do João Chaddad, decidiu partilhar o mistério com outros moradores e a Inhala Seca, com certeza, vai assombrar muita gente. O mistério, quando se banaliza, fica pior ainda. A bruxa velha deve estar enlouquecida, mas loteamentos fingem não acreditar nisso. A conta vem depois.

Ora, quanto sabem que a mais bela jovem do mundo repousa sob as águas do rio. É a “Noiva” verdadeira, à espera do amante que foi engolido por um rio enlouquecido de ciúme. Num amor desesperado, o rio queria aquela mulher, bela como nunca outro existiu, apenas para si. Sem o amante, desconsolada e saudosa, a moça ficou ora dormindo, ora chorando, sob as águas do rio. Quando a dor se torna insuportável, ela se abraça a quem lhe pareça ser o amor escondido e o carrega para o seu leito nas pedras. Se alguém morre, as águas sobem. E é preciso um outro morrer para as águas descerem. Quando o amor da moça retornar, haverá paz. São mistérios da paixão. No nosso rio.

Por isso, não basta segurança se não se respeitar os fantasmas do rio, se não se render a seus mistérios. A dolorosa morte de moços, especialmente se belos, devorados pelo rio, será menos doída se acreditarmos terem sido, eles, amantes que a moça do rio elegeu para amar. Se é verdade, não sei. Mas, desde sempre, ouço essas coisas. Por isso, indago-me: e se, em vez de fatalidade, coisas que acontecem não sejam trechos de uma apaixonante história de amor? Isso não enxuga lágrimas. Mas fica mais bonito. Bom dia.

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