Mundo de voyeurs

picture (16)Cada um tem lá suas percepções da vida, diante dela. Se não tiver – ou se pensar não as tenha – deveria tê-las ou ficar mais atento. Pois são também elas, as percepções, que constroem maneiras de olhar o mundo, estilos de viver. Diante de uma nuvem, há quem, olhando, não veja nada além de uma nuvem. Outros podem ver carneirinhos nelas. Ou castelos. Ou leitos de príncipes e princesas.

Numa tarde já distante, o garoto viu-me no jardim, olhando para o alto. Ele se aproximou, quis saber o que eu fazia. Havia um escandaloso, deslumbrante arco-íris no céu, após uma chuva miúda e fria. “Quero tocar o arco-íris.” – falei. Ele balançou a cabeça: “Você é bobo.” E me explicou que, na escola, aprendera que as cores do arco-íris eram apenas um fenômeno físico, sei lá. Ora, professores haviam-lhe ensinado o prosaico das coisas. Eu pensava em mistérios de arcos-íris.

Eram percepções, como não? Então, admiti, ao garoto, que os professores tinham razão, que o arco-íris podia ser aquela coisa insossa que se explica na ponta do lápis. Mas que, algum dia, ele, o menino, ouviria falar do “Mágico de Oz”, de “over the rainbow” e, então, descobriria que – além, muito além do arco-íris – há um lugar. Contei-lhe o segredo: Deus inventara o arco-íris para as pessoas olharem para o céu, verem coisas além dos próprios pés. Se olhassem e tivesse coragem de voar, subiriam no arco-íris como se sobe num tobogã, escorregariam por ele e pousariam numa pradaria toda florida, recolhendo potes de ouro e de mel.

O menino fixou os olhos em algum vazio do espaço, perguntou-me: “Você acredita mesmo nisso?” Não hesitei: “Acredito.” A criança pegou minha mão, apertou-a e repetiu o que outra professora, a do jardim da infância, lhe contara. Era uma versão ainda mais bonita do que a minha. Além de potes de ouro e de mel, a professora garantira que, se conseguisse entrar no arco-íris, uma criança, ao sair dele, sairia toda colorida, cada pedacinho de corpo com uma cor. “É verdade.” – confirmei.

Conforme se olha o mundo, cria-se uma maneira de ser, de existir. O real é mais dos outros do que nosso. É a realidade deles, para onde nos jogam, dolorosamente diferente da nossa. Quem conseguir viver a partir de suas percepções talvez encontre mundos mais serenos e mais fáceis para se estar. Como se faz isso, não sei. Acho, apenas, ser preciso tentar, ir tentando.

Há alguns anos, fez grande sucesso, na Europa, um vídeo mostrando o jogador Beckam dormindo. Eram 47 minutos de filmagem: Beckam a sono solto, estirando-se, respirando fundo, talvez balbuciando e remoendo coisas, toda a sua fisiologia funcionando. A percepção do cineasta focou-se apenas na plasticidade escultural do atleta: “Beckam parecia o David de Michelângelo”. Ele viu uma escultura, não viu o homem.

Mas pode e deveria haver uma outra percepção. A de que, no sono, está um dos mais sagrados e intocáveis momentos da pessoa humana, inviolável. Há apenas encantamento numa criança dormindo. Do adulto, no entanto, o sono é o mosteiro de seus segredos e conflitos. Dormindo, o ser humano está inteiramente indefeso, vulnerável, frágil, sem qualquer controle sobre si mesmo, incapaz do uso de sua razão, da inteligência. Observar alguém dormindo é, penso eu, uma forma de violação.

No entanto, com a perda do pudor em nossos tempos, quando a intimidade das pessoas é exposta como entretenimento – caso desses toscos e lamentáveis BBBs – é quase tolice insistir em dignidade pessoal. Filmar o sono alheio parece ser uma das sínteses de nossos tempos: o espetáculo não respeita privacidades. O ser humano – já proibido de sonhar de olhos abertos – perde o direito até mesmo de sonhar dormindo. É um mundo de “voyeurs”. Bom dia.

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