O abraço de seis mil anos

A banalização e a banalidade do mal foram desnudados por Hanna Arendet, pensadora alemã, cuja obra se tornou indispensável para conhecermos as monstruosidades de que é capaz o ser humano. Mergulhando nas atrocidades cometidas especialmente pelo líder nazista Eichmann, um burocrata cumpridor de ordens, Hanna expõe a crueza da condição humana incapaz, muitas vezes, de diferenciar o bem do mal. O homem continua sendo o maior mistério da criação.

É espantosa, no entanto, essas facetas antagônicas da dimensão humana, como se anjos e demônios convivessem na mesma pessoa. Refletir sobre isso é inquietante e, mais ainda, quando se mergulha nas indagações de grande pensadores. Não creio, ainda hoje, possamos chegar a conclusões definitivas a respeito da possibilidade do bem e do mal numa mesma pessoa. Seria isso cultural, herança genética, consciências deformadas? O fato é que num só homem pode estar o artista notável ou o filantropo generoso capaz de se transmudar em canalha e bandido perverso.

Uma das observações que mais me fascinam é a de, no meio da multidão, olhar um homem carregando no colo uma criança. Por mais bruto aparente ser, por mais agressivo saiba-se que ele é, esse homem se transforma numa figura protetora e generosa, acolhedora e cuidadosa. Se deixar a criança, será capaz de, logo em seguida, agredir e até matar alguém.

Há, no ser humano, uma riqueza quase infinita de valores que, no entanto, podem ser minimizados exatamente por essa banalização ou pela banalidade do mal. De repente, acostumamo-nos de tal forma com a violência, a agressão, o individualismo, o conflito, a disputa, a competição odiosa que acabamos perdendo a capacidade de ver o belo, o bom e o generoso. Ora, as coisas belas falam por si mesmas e quem as produz e as realiza torna o mundo mais esplêndido no encontro do divino com o humano. Diante da obra de um Bach, de um Van Gogh, não sabemos se são eles que receberam dons divinos ou se é o próprio Deus que quer imitá-los. Aliás, tenho a impressão de que, de vez em quando, Deus sente inveja da beleza da criação humana, embora, quase sempre, continue a detestar as destruições.

Essa descoberta de arqueólogos, na Espanha, de ossadas de seis mil anos que estavam abraçadas deveria tocar-nos a consciência com mais profundidade. Quem seriam eles: um homem e uma mulher, mãe e filha, pai e filho? Ainda não se sabe ao certo, mas sabe-se do abraço, de dois seres humanos que foram sepultados um nos braços do outro, gesto e atitude que, ainda agora, revelam o carinho, a afetividade, a capacidade de amar e de doar-se do ser humano. Ora, se há seis mil anos o amor era demonstrado também pelo abraço, o que está acontecendo conosco, tantos milênios depois, que deixamos de nos abraçar uns aos outros, de nos darmos as mãos, de trocarmos carinhos sem malícia? Nem mesmo os amantes, que se desejam com ardor, se abraçam e se beijam com o ritual da paciência, do respeito, da libido generosa de antigamente. Tudo se tornou rápido, imediato, apressado, descartável.

As ossadas encontradas na Espanha, aquele abraço de duas múmias deveriam ser divulgados em salas de aula, em conferências, em simpósios como lembrança do que existiu. Ora, diz-se que, no início do Cristianismo, o que causava admiração era a maneira como os primeiros cristãos se confraternizavam: “Olhem, como eles se amam.” Hoje, diante das ossadas da Espanha, talvez a lição nos valesse para refletirmos mais seriamente: “Vejam, como eles se amavam!” Sei lá. O que há de verdade, porém, é que, diante da banalização do mal, a resposta está na recuperação e propagação intensiva do bem. Bom dia.

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