O bruxo

pictureQuase sempre, ao passar na esquina da rua Governador com Prudente – à frente da sede do Cristóvão Colombo, no antigo Posto Petrocelli – penso em Júlio Bruhns. E fico com saudade do Pedrinho Petrocelli, que seria uma das mais fiéis testemunhas das diabruras do velho bruxo. Diziam, alguns, que eram mágicas, outros falavam em prestidigitação, sei lá se tudo é a mesma coisa. Para os que víamos Júlio Bruhns fazê-las, as coisas que ele fazia pareciam-nos bruxarias. Tínhamos certeza. Para se ter idéia: no bar do Tanaka, ele tirava lápis de dentro de garrafa com a força do olhar. E, no posto do Pedrinho, atirava chaves, fazendo-as grudar em paredes. Vade retro, Satana!

Júlio Bruhns foi um dos gurus de minha adolescência. Íamos andar pela cidade quase todas as noites. Exatamente às 22 horas – nem um minuto a mais, nem a menos – ele aparecia na esquina da rua São José com a Governador. E começava a caminhada: do centro à ponte principal do rio, de lá à Paulista, descendo, em seguida, a Governador. A procissão terminava na Praça José Bonifácio onde, altas horas da madrugada, Júlio ainda contava casos, feitos, façanhas. E insistia: “Sou primo do escritor Thomaz Mann. A mãe dele, Júlia, é minha tia.” E era verdade.

Em 1994 – estou quase certo da data – um neto do admirável escritor, Prêmio Nobel de Literatura, esteve em Piracicaba trazido por editores da “Ars Poetica” que, coincidentemente, publicara um romance meu. Ele queria mais informações sobre seus ascendentes. E o princípio estava aqui: a mãe de Thomaz Mann é a cabocla Júlia da Silva Bruhns, filha de Johan Ludwig Hermann Bruhns, um alemão que se estabeleceu em Piracicaba, agraciado por D.Pedro II com direitos de navegação fluvial dos rios Tietê e Piracicaba. E mais: há vínculos com os Germano, da historiadora Marly Germano Perecin. Portanto, sementes de Piracicaba estão na “Montanha Mágica”, no “Fausto”, do genial escritor.

Pensei fosse invenção de Júlio, o bruxo, um homem de sólida cultura, de conhecimentos raros, poliglota. Ele falava em japonês com o Tanaka do bar; em árabe, com meu pai; em iídiche e em russo, com dona Helena, judia russa vendedora de roupas. E em italiano, com a cidade inteira. Trabalhara no “Estadão”, próximo de Marcelino Ritter, Leo Vaz, Sud Mennucci e Mário Neme, homens identificados como a “geração piracicabana” do jornal dos Mesquita.

Quando caiu o prédio do Comurba, uma lembrança incômoda aumentou-me o pesar, o mal estar. Naquelas antigas madrugadas de conversas soltas, o bruxo e eu víamos o esqueleto do edifício que, a cada dia, se ia erguendo. À noite, era uma monumental sombra. Júlio Bruhns ficava em silêncio e olhava fixamente aquelas estruturas. E, então, aumentavam-lhe os tiques nervosos, o revirar de olhos, o balançar da cabeça. Nunca lhe perguntei o que o incomodava, o que via. Quando o prédio caiu, não quis pensar naquilo. Nem agora.

Uma noite, Júlio Bruhns não veio. E não veio nunca mais. Desapareceu. Mas já me tinha marcado a vida. Bom dia.

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