O livro e o pão

picture.aspxCada qual tem os seus egoísmos insuperáveis. Neles, encerram-se, talvez, todas as neuroses e, quase sempre, conduzem a paranóias. As pessoas têm suas obsessões, as mais estranhas de uns para outros. Por isso, tremi quando soube do abandono em que ficou o patrimônio cultural de Jorge Amado, seus livros, seus documentos, fotos, toda a história de sua vida que tanto dignificou o país. O seu acerto seria levado para a universidade de Harvard, o que seria uma vergonha nacional. Felizmente, de última hora, o governo da Bahia acordou para o crime que se cometia. Acervos de nossos escritores e intelectuais são patrimônios nacionais.

Certa vez, elaborando o projeto de uma casa – já contei desse surrealismo – ficou difícil chegar a um acordo com o projetista. Eu lhe dizia que o espaço para a biblioteca era pequeno, ele insistia ser suficiente. Discutíamos sem chegar a qualquer solução. Ele queria quartos, banheiros imensos. Eu queria um espaço para os livros. Então, ele deu a solução: “E por que você não joga fora ou dá os livros que já leu? Se leu, por que guardar?” Enlouqueci e, em meu enlouquecimento, eu vi o jovem engenheiro vestido das capas negras da Santa Inquisição ou como agentes nazistas queimando livros, fazendo fogueiras de livros. Livro é sagrado. Mais do que se pensa.

Por isso, não entendo desprezos a acervos culturais, muitas vezes o descuido oficial até mesmo com instituições. Há pouco tempo, como piracicabano, pedi explicações aos novos desconstrutores da Unimep a respeito de uma devassa que se fazia em documentos e arquivos do “Martha Watts”. Aquele patrimônio não é fundamentalista, mas nacional. Tentaram chamar-me de “fiscal” e a pretensa zombaria me soou como notável elogio. Que bom cada cidadão pudesse ser fiscal dos valores de sua terra.

Até recentemente, as pessoas não jogavam pão fora. Nem mesmo um pedaço. Quando era inevitável fazê-lo, beijava-se o pão. Significava o “corpo de Cristo”, o pão eucarístico. Com livro, é a mesma coisa, ainda que os infiéis e os ímpios não saibam. Livro – até mesmo o pornográfico – tem origem sagrada. Basta ver as religiões todas com os seus livros sagrados. A Bíblia, o que é senão “o livro dos livros”, “biblos”? Os livros santos, acreditam os fiéis, são de origem divina, emanação da divindade: a Torá, criada mil anos antes de sua divulgação; o Corão, que Maomé ouviu dos lábios dos anjos; Rigveda, que se diz inspirado por Brama. Os egípcios tem o deus Tot como inventor da escrita e, para os balibônios, esse deus-escritor tinha o nome de Nabu. Em Moisés, está o livro redigido por Deus. Eis, pois, o “Livro da Vida” onde tudo está escrito, onde estão os eleitos. Nos céus, guardam-se os livros onde se anotam as ações dos homens.

Há uma citação – ou se trata de lenda, não sei – em que o Apóstolo João recebe a instrução para comer um livrinho. Ele leva-o à boca, mastiga-o, diz: “na boca, era doce como mel; mas, quando o engoli, amargou-me o estômago.” Isso soa apocalíptico, mas a verdade é que livros, de princípio, são doces como mel. Mas, quando os digerimos – e livros se digerem na alma, não no corpo – eles se tornam amargos por revelarem muito além da realidade medíocre e apequenada.

Por isso, não dou, nem dôo, nem empresto livros. Mesmo porque não há livro que se leia apenas uma vez. Em cada tempo da vida, a leitura é outra. Estou no tempo de reler tudo. Muito menos para lembrar e muito mais para ver se, agora, aprendo alguma coisa. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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