O rio e a vingança da natureza

Esse texto foi publicado em 1º de setembro de 1979 em O Diário. E depois selecionado para o livro Bom Dia: Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Nada é tão certo (e verdadeiro) quanto a vingança da natureza. Apenas a estupidez não a percebe, por mais que a história, o passado, insistam em ensinar. Violamos e violentamos tudo, como se a impunidade fosse um direito que adquirimos ao longo do exercício milenar da depredação. O próprio pecado original não seria, talvez, o da predação, do homem que rompeu a harmonia do Éden?

Lembro-me, ainda que inconsciente, do primeiro choque ecológico que senti. Eu era pequeno, muito pequeno, quando vi derrubarem o jardim da antiga Praça da Matriz. Não sei se eu é que era pequenino ou se as árvores é que eram imensas e generosas, em sua sombra e no frescor que espalhavam. Joãozinho Feliciano — o doce negro que cuidava de mim — levava-me a brincar naquele jardim, 0 meu primeiro paraíso perdido. De repente, as árvores caíram e, a partir daí, minhas lembranças se esfumaçam e se escondem. A vingança da natureza ferida.

O meu segundo choque foi a construção do Estádio Municipal, monumento à estupidez humana porque construído às custas da morte, do derramamento do sangue verde e resinoso do último de nossos bosques urbanos. Nas noites cavernosas de chuva e de vento, os uivos que ouvimos devem ser o gemido e o lamento de Lagreca e Almeida Júnior, de Sud Mennucci e de Prudente chorando, ainda hoje, a morte criminosa das jabuticabeiras.

Ah, jabuticabeiras!. O meu terceiro choque ecológico, o mais consciente e doloroso de todos eles. Tinha duas em minha casa. E eram belas e férteis. E seus frutos eram doces e sumarentos. Quando floriam, as manhãs eram perfumadas e, abrindo as janelas, inundávamo-nos de sua fragrância irresistível. Houve uma primavera em que elas não floriram. Um outono em que não frutificaram. Descobri, então, que estavam mortas — lindas na aparência, mas estéreis, ocas, vazias, o útero destruído por um formigueiro. Havia-me descuidado delas e elas morreram. E a natureza se vingou. Pois, no lugar delas, plantei um flamboyant e, depois, um ipê. Nenhum deles chegou a crescer. Morreram em poucos meses como se o útero da terra os em sinal de protesto.

Hoje, estamos todos chorando a morte do rio. Vãs e inúteis, as nossas lágrimas. Colocou-nos, diante dos olhos, uma corredeira maravilhosa que rumorejava. O salto bramia, roncava, gemia, implorava. Ninguém, ao longo dos anos, entendeu a sua linguagem. Nem mesmo os poetas que tanto o cantaram. Pois o rumorejar do salto era o seu próprio estertor, o grito de quem já estava clamando por socorro. Surdos e cegos. Agora, ainda outra vez, a natureza se vingou, transformando-o.

A natureza nunca nos deixará em paz enquanto não colocarmos no banco dos réus os criminosos que matam os nossos rios. O dinheiro que ganharam às custas de vida haverá de acompanhá-los até o inferno. E depois voltará a florir.

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