Por quem os sinos dobram

SinoNem sempre é fácil entender que “os mortos enterram seus mortos”. Mas melhormente compreensível é a quase certeza de que “os mortos governam os vivos”. Tanto parece ser assim que a civilização mostrou seus primeiros sinais quando o homem passou a dar sepultura aos que morriam, em vez de permitir que ficassem expostos ao sol, à chuva, aos abutres. Ao criar a primeira sepultura, antecipando o surgimento dos cemitérios, o homem começou a viver a sua humanidade a partir do outro. E a tão temida morte pareceu mais suportável, talvez como um sono profundo, uma espera, a esperança num ressurgimento. Ao serem honrados pelos vivos, os mortos passaram a governá-los

Quando se esquece o ente querido que morreu, este morre duas vezes. A morte física e a morte da memória. Por isso, Finados, antes de ser um dia dedicado aos mortos, é um dia da memória. Os cemitérios desapareciam, as grandes tumbas também, todos os campos santos seriam extintos se a memória dos vivos matasse seus mortos queridos. E, com o tempo e as instituições também é assim. Sem memória, o tempo deixa de existir para se tornar apenas um instante. E, com um povo desmemoriado, as instituições naufragariam, barcos a vela em oceanos devoradores.

Há milênios, quando os orientais adoravam o Deus Sol, o esplendor da vida, as promessas de felicidade, a alegria vinham de onde o Sol nascia, como se o deus surgisse sempre no mesmo espaço e antes de a noite despedir-se por inteiro. O Oriente era a luz, de onde, até hoje, falarmos de orientação, orientar e seus contrários, desorientação, desorientar. Por isso, desde o início dos tempos, o Ocidente era o “caminho dos mortos”, o lugar nenhum. Ainda que milenares, essas marcas ainda permanecem vivas feito chagas na alma humana, nos mistérios do inconsciente coletivo. Assim, até hoje, o Ocidente se reveste de festas, de luzes, de materialismos, de superficialidade – ao lado das maravilhas das conquistas humanas – como para negar ser “o caminho” e o “lugar” dos mortos. Mas nada há que impeça ou disfarce em definitivo a tristeza oculta que domina a alma ocidental, diferente da nostalgia, da poesia, da contemplação oriental. Ora, se há um Sol para o qual se voltar e adorar, por que ir-se em busca desse vale de sombras chamado Ocidente?

No célebre poema de John Donne, poeta e místico, a imagem dos sinos que dobram permanece inquietante, como inquietante foi no livro “Por quem os sinos dobram”, de Hemingway, que se abre tendo o trecho principal do poema como epígrafe. John Donne já entendera que “nenhum homem é uma ilha” e, por isso mesmo, somos parte do continente humano, a mesma humanidade. Perguntar, pois, por quem os sinos dobram é inutilidade, pois eles dobram por nós, especialmente nesse tempo de lutas e batalhas e guerras e confrontos. Ao dizer que “os sinos dobram” por mim, por todos, John Donne nada mais fez do que para nos alertar a essa nossa frágil, apaixonante e dilacerada humanidade comum.

Neste Dia de Finados, cemitérios e jazigos recebem visitas reveladoras de que entes amados não foram esquecidos. Logo, continuam vivos. Os mortos enterram seus mortos, vivos- mortos sem memória, mortos esquecidos. Enquanto isso, os mortos nos governam. Tanto e tanto que os reverenciamos em nossa saudade, em nossos pesares e sentimentos de perdas. E numa, para alguns, esperança viva ou apenas mal explicada de reencontro. Os sinos continuam dobrando por nós. E, em especial, pelo Ocidente. Bom dia.

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