Quando demora, já chegou

O texto foi publicado no dia 21 de agosto de 1979 em “O Diário” e depois selecionado para o livro “Bom Dia – Crônicas do Autoexílio e da Prisão”

A expressão vai-se repetindo ao longo de todo o livro, saída dos lábios simples e sofridos de um personagem real. Percebe-se que não tem, o memorialista, a intenção de explorá-la. Mas vai marcando, infiltrando-se, e sem o notar, o leitor acaba detendo-se para refletir. O personagem – sábio na incultura, sábio com o que aprendeu na vida e pelo sofrimento – insiste em repetir-se: “Deus, quando demora, está chegando”.

Posso antever o sorriso cético dos céticos. E penalizo-me deles, na angústia de constatar, a cada passo, que todos os vazios de Deus, nessa loucura – que a todos domina – de substituir o eterno pelo passageiro, o imperecível pelo perecível: “Deus quando demora está chegando”.

A frase foi penetrando-me devagarzinho porque nunca, como agora, mais me convenço de o grande desafio – que se abre aos homens, numa época apocalíptica e anunciadora do holocausto – estar em conseguir ouvir, no silêncio, a voz de Deus; de ver, em meio à multidão, a presença invisível de Deus; de sentir, quanto mais as dores se intensificam, as mãos balsâmicas e consoladoras de Deus.

Outro dia, numa tarde garoenta, vi, em plena Praça da Sé, um homem inteiramente deformado. Suas pernas e braços eram apenas tocos que se lhe despencavam do tronco. Os pés estavam pendurados nos quadris, as mãos saíam dos ombros.

Uma figura quase repelente em suas configurações físicas. E, no entanto, a multidão era atraída pela sonoridade da sua voz, poderosa e límpida, que ia se destacando em meio a todos os murmúrios. Sorridente, expressão pacífica, o homem dava testemunho de seus aleijões, desafiando o povo a ser feliz como ele se dizia ser. E cada desafio batia na alma como se fosse um soco, agressivo e irresponsável.

Dizia, ele, não poder andar ou comer com as próprias mãos. Mas que era feliz, porque – nada exigindo do mundo e a ele nada pedindo – bastava-se a si mesmo, com a alegria que sentia intimamente. Não se queixava, não se lamuriava, não aceitava esmolas. Queria apenas ser ouvido. Um profeta da dor e da esperança, que conseguia fazer com que as pessoas de lá saíssem cabisbaixas, como que envergonhadas.

Confesso ter pensando ainda mais na frase quente e desafiadora: “Deus, quando demora, já está chegando”. Quem – mesmo não tendo coragem de confessá-lo – não sentiu, ainda, a presença de Deus em sua vida? Não a presença ostensiva, impactante – que esta se impõe em todos os minutos, diante de nossos olhos, na pessoa que passa, nas flores que despontam, na própria perplexidade humana que desfila. Mas a presença silenciosa, quase imperceptível, que nos leva a caminhos inesperados e não planejados.

A imensidão do egoísmo humano é responsável por nossos equívocos. A partir do momento em que perdemos o verdadeiro sentido da vida, mergulhamos no pior de todos os vazios: o da perplexidade. Aquele não mais saber de onde viemos, para onde vamos, o sentido de estar participando da epopeia da vida. Passamos, então, a querer que o mundo gire em nossa órbita, que sejamos, cada um, o fulcro e o centro do próprio universo. Mesquinhos e egoístas, buscamos que prevaleça a nossa vontade, com o exclusivismo que nos aparta do universal. Há um grande destino comum que se ajusta ao de cada homem, que é o de reconstruir o jardim destruído.

Quase todos insistimos em desfilar nosso rosário de insatisfações e de angústias, perguntando por Deus. Nem percebemos que, quando parece demorar-se, Ele já chegou, como fala a sofrida personagem de um livro sábio. Bom dia.

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