Razão do coração

pictureHá alguns anos, uma leitora e amiga – que se vai tornando vigia de meus textos – perguntou-me: “Afinal de contas, você acredita ou não em Deus?” Tive a tentação de responder com outra pergunta: “Qual Deus?” Mas preferi ser direto: “É óbvio que acredito.” Ela insistiu: “E por quê acredita?” Concluí sinceramente: “Por ignorância e incompetência.”

Ela discordou, não admitindo a possibilidade de alguém crer em Deus por ignorância. Enquanto falávamos ao telefone, eu andava por minha varanda. E todas as cores explodiam-me diante dos olhos. Falei, então, à amiga e leitora, de minhas incapacidade e ignorância para realizar tantas maravilhas, tantas mágicas: “Não consigo fazer um flor, não consigo construir uma estrela; sou incompetente para compor a sinfonia dos passarinhos e para colorir o horizonte com um pôr-de-sol diferentes a cada dia. Rendo-me a quem é capaz de toda essa criação.” Apenas isso.

Não quero mais entender nada, eis o que tentei dizer à leitora amiga. Há coisas que já estão no coração, que nos chegam desde quando, na carne, nos foi plantada a alma. Tento, neste meu tempo de viver, caminhar pela vida sem angústia de entender mais nada além de palpitações de alma e coração. Insistirei até o fim: mais do que entender, sentir é preciso. São as razões do coração, de que os poetas sempre falaram. É pelo coração que se conhece. O conhecimento racional é capenga, pois a razão é capenga.

Ignorar o coração é, penso eu, caminhar tropegamente pela vida. A razão explica amputadamente. Quando me apaixonei pelo comunismo, minha razão foi comunista; convertendo-me ao catolicismo, ela se tornou razão católica; na política, pensei a partir da razão do Estado. Quando me disse ateu, acho que nem agnóstico eu conseguira ser. Ou era e nem sequer sabia. Nosso poeta maior, Lino Vitti, disse-me, por muitos anos, que eu não descobrira o meu lugar no mundo. Ele estava certo. Comecei a descobrir. E é um lugar pacífico, sereno, mas com profundas inquietações.

Certo dia, lendo sobre o conhecimento, deparei com outro mágico jogo de palavra dos franceses: conhecer é co-nascer. E co-nascer é nascer com. Na língua francesa, o jogo fica admirável e explicativo: o “connaître”(conhecer) pode ser “co-naître” (co-nascer, nascer com.) Logo o conhecimento nasce das vísceras e do coração. A riqueza lingüística consegue entender o conhecimento como um co-nascimento. O verbo deles permite: “connaître”, “co- naître”, conhecer, co-nascer. Conhecer seria, pois, um “nascer com”.

Até os livros santos já no-lo tinham revelado, referindo-se a homem que “conhece mulher”, a mulher que “conhece homem”. Esse conhecer bíblico – no sentido do corpo de um e de outro – dá o significado absoluto do amor humano: quem “conhece” alguém “co-nasce” com ele. O amor entre homem e mulher seria isso: “nascer com”, conhecendo-se.

Conhecer, conhece-se, pois, no coração. Nele, a razão silencia. O sonho humano talvez seja o de a inteligência iluminar o que o coração deseja ou sabe. Mãe conhece essas coisas. O coração lhe diz contrariando a razão. E não erra. É, pois, a chave do segredo. Pela razão, nem sempre se chega ao conhecimento. No coração, comecei a perceber boas novas: para conhecer, era preciso aprender a co-nascer. Nascendo com, dá-se o co-nascimento.

Há coisas que a razão impede de enxergar, como aquelas escamas nos olhos de Saulo. No coração, o homem co-nasce, co-nhece. E, misteriosamente, acredita firmemente naquilo que não vê. Bom dia.

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