Um acalanto antigo

pictureHá algum tempo, ouvi, ao telefone, as lágrimas de querida amiga que se tornara avó. Ora, quem acreditar lágrimas possam apenas ser vistas. São de ouvir quando, feito pérolas, gotejam na alma. É quando a voz se embarga. Fica em surdina. Como chuvinha miúda caindo em relva macia. Embargada, a voz de minha amiga eram lágrimas de alegria diante da vida que continuava através do neto.

A velha amiga, então, me perguntou se eu me lembrava do que escrevi quando me nasceu a filha primogênita. Não, não me lembrava. E ela me contou o que eu escrevera, na coluna com esse mesmo nome, Bom Dia, na antiga Folha de Piracicaba: “Berceuse para Patrícia”. Lembrei-me do título. No entanto, ao tentar, no coração, recuperar o texto, minha voz foi que se afogou. Como, passados mais de quarenta anos, a amiga se lembrava da “berceuse” que compus para minha filha?

Foi em 1965, tempos de trevas, meu coração também em trevas num país coberto de todas elas, horizontes fechados. Botas e coturnos militares tinham trocado as sapatilhas do “pas de deux” da esperança por marchas e pisadas guerreiras. O vôo das borboletas espantara-se ao estrondo de tanques e de fuzis. Pesadelos penetravam nos desvãos dos sonhos. Foi acalanto, como que cantiga de ninar, a “berceuse” que escrevi para a primeira filha, nascida em tempos de trevas. Compus minha luz.

Evitamos remexer nas próprias entranhas, especialmente as da alma. Há, nelas, algo oculto que, pelo menos eu, evito aflore. Lembrar, porém, que – ao som de botas e tacões – consegui compor uma “berceuse”, um acalanto, mais do que uma iluminação, isso é – quando o Outono anuncia o Inverno da vida – a redescoberta do humano. Pois, como numa revelação, retorna-me uma certeza quase perdida ou esquecida: é a paternidade que redime o homem; a maternidade, que diviniza a mulher. Tamanha é essa dimensão do divino que, em plena luta – ou entre trincheiras – o guerreiro consegue escrever uma cantiga de ninar.

Então, ressurge a saudade – sempre agridoce – de tempos difíceis mas felizes, de tempos de lutas mas de esperanças: o bando de crianças, em algaravia como de passarinhos, os gritos, as brigas, choradeiras, penduradas no pescoço, sentadas no colo, nos joelhos, deitadas no peito cansado. Cadê as mamadeiras? E as fraldas, tantas fraldas, cadê? Como o vento, o tempo as levou. Que pena.

O poeta Gibran Khalil seduziu o mundo com imagens marcantes. Uma delas marcou como uma anunciação: os pais são como arcos que lançam flechas – seus filhos – em direção ao mundo e à vida. Agora, soa-me triste. Pois, se pudéssemos, pai algum deixaria filho crescer. Continuariam crianças, debaixo de nossas asas como pintinhos sob as da galinha.

Recordar “berceuses” abre feridas. Nas entranhas, lateja-nos a alma paterna. Pois, como o pai bíblico, ficamos olhando o horizonte, à espera de os filhos voltarem da longa viagem vida adentro. E, então, oferecer-lhes o mais gordo cordeiro e as mais belas vestes. Por que não ficar compondo e cantando-lhes “berceuses” por todo o sempre? Bom dia.

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