Reflexões de Natal – 5 (O Menino)

picture (2)Joseph Campbell, ao escrever a “Jornada do Herói” – um dos monumentos do estudo das crenças universais – descreveu, à sua maneira e comparativamente – a trajetória do herói desta nossa maravilhosa história ocidental. O Salvador é o Herói. Ele nasce em manjedoura, de pai desconhecido, pois é enteado de José e não pode entender o que seja a concepção pelo Espírito de Deus. Na verdade, nasce de uma decisão divina impossível de ser entendida pelos humanos: dá vida humana ao Filho para, em seguida, permitir o seu sacrifício. Isso já ocorrera antes com Abrahão e Jacó, o princípio dessa história. A história brota de um Deus homicida.

Nasce o Menino. E é judeu, do povo hebreu. Logo, um escravo, pois a palavra hebreu tem esse sentido original: escravo. Como foi José do Egito, escravo do Faraó. A história continua, uma seqüência de misérias, de sofrimentos, de promessas e de cóleras divinas. Por isso, a sabedoria dos escritores dos Livros Santos está, especialmente, nesse fantástico poder de sintetizar a trajetória humana a partir da jornada dos heróis. O herói judeu, o menino Jesus, estaria destinado à vida, à paixão, à morte e – como consagração final – à ressurreição. Parece existir um resumo que Nietzsche absorveu a seu modo: a vida é um eterno retorno. Jesus nasceu, viveu, morreu, ressuscitou – fechando o círculo, fazendo toda a jornada, o herói que, parecendo perder para o mundo, venceu.

O Ocidente vive dessa história, ainda que não o perceba, ainda que a tenha esquecido ou esteja sendo sonegada às novas gerações. O mundo ocidental vive-a modorrentamente, seduzido pelo “deus ex-machina” das teorias políticas, econômicas, sociais. Jesus, o judeu, não era cristão. Os apóstolos, primacialmente Paulo, criaram o Cristianismo, seguidores do Christos, do herói que deixou a mensagem de vida e de esperança. Séculos se passaram e não podemos, hoje, dizer que os frutos desse cristianismo tenham sido generosos. Há, na jornada do Menino que nasceu da Virgem e teve pai adotivo, uma série de interpretações que, no lugar do Grande Herói, colocaram pequenos, medíocres heróis, muitos deles farsantes. A maravilhosa história do Ocidente foi desfigurada. O herói está, novamente, suplantado pelo bezerro de ouro, agora travestido de um velhinho gordo, corado, alegre, generoso, a que deram o nome de Papai Noel, invenção da Coca Cola. Papai Noel e Coca Cola criaram um novo Natal.

No entanto, a herança ficou e é renovada a cada ano, como se faz com o Dia de Finados, o Carnaval, a Sexta Feira Santa. São dias de um calendário cristão, que formam um roteiro de vida, que são um caminho muito mais de sabedoria e de solidariedade do que de simples conforto pessoal. Não há individualismo na proposta de nosso herói, na jornada do herói dessa maravilhosa história do Ocidente. Ele é um solitário, conhece a solidão, mas propõe o solidarismo. Nesse herói, estão a pessoa, o indivíduo, mas que se completam na comunhão. O herói é capaz de morrer pelo outro. E, se sobrevive, sobrevive pelo e com o outro.

O Natal voltará a ser sagrado quando o Menino tornar a ser o centro da celebração. E, então, compreendermos que Jesus, o Cristo, não trouxe apenas uma difusa ou incompreensível promessa de vida eterna após a morte física. A sua é proposta de vida para o aqui e agora. Mais até do que religiosa, é referência ética, pessoal e social. A Igreja Católica elaborou essa impecável engenharia humana que se tornou também religiosa. E detém os segredos de uma arquitetura insuperável em beleza, em harmonia, em balizas, capaz de construir uma civilização digna de sua própria humanidade. Contestar essa riqueza moral é ato ou atitude de racionalistas simplórios. Eu fui um deles.

A fé é como o amor: não se explica. Explicar o mistério é tolice. E, essa, eu não a cometo mais. Bom dia.

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