Regozijo pelo sangue derramado

Preferi ouvir, apenas ouvir. No anoitecer preguiçoso, os moços conversavam. Pequenos morcegos voaram em torno das trepadeiras, um gato passou perto, um cachorro da vizinhança latiu. Uma das moças falou ser mais fácil – e “mais agradável”, insistiu – tratar com bichos, cuidar deles. Outra, a respeito das cobaias de seu laboratório, insistiu na “limpeza dos ratos, tão limpos que, para examiná-los, é preciso usar luvas.” Aguardei alguém falasse do ser humano. Um rapaz meneou a cabeça: “É inviável, não dá para confiar.”

Evitei comentários, imaginando decepções pessoais dos jovens, experiências amargas, convívios desgastantes. Pensei, porém, na violência dos ditadores, de governantes tirânicos, nas razões de Estado e, até mesmo, nessa farsa da campanha antitabagista. A pretexto de salvar o ser humano sei lá de quê, mata-se o próprio ser humano, destroem-se liberdades. Ora, não me esquecerei jamais de quando os então líderes do mundo ocidental, Tony Blair e George Bush, apareceram na televisão, felizes e regozijando-se com o povo iraquiano e a humanidade pela morte dos dois filhos de Sadam Hussein, e do neto dele, um adolescente. À lembrança, os ecos do lamento do rapaz, a meu lado na varanda, soaram ainda mais melancólicos: “O ser humano é inviável, não dá para confiar.”

Que não seja assim e que nem cheguemos a tais extremos e generalizações. Mas que há de se esperar de um mundo liderado por personalidades e governantes que se comprazem com o assassínio de seus adversários, com a morte de filhos e de neto de um outro homem, não importa que tirano? Soldados matam civis, crianças mulheres, bombardeiam cidades, vilas, hospitais, deixando rastros de sangue e de horror por onde passam, como se fossem o novo flagelo de Deus.

Dizer o quê, justificar como? Que tempos são estes, que mundo permitimos fosse construído – quando e onde líderes mundiais se regozijam com a morte, celebrando o assassínio de inimigos? E as vozes iradas, coléricas, que se levantavam contra a crueldade de Hitler, de Stalin, do próprio Sadam, por que silenciaram, por que silenciam? E os religiosos, que mensagem ou orações enviam às mães de menino assassinados, às viúvas dos moços cujas fotografias espalham-se pelo mundo como cartazes de vitória?

A ética dos caubóis do Texas era mais humana. Eles poupavam crianças. E duelavam, olhos nos olhos. As guerras atuais, protagonizadas pelas grandes potências, são mais sujas, pois fazem com que as máquinas matem, poupando o soldado de levar para casa o uniforme tinto de sangue. São guerras onde quem mata não enxerga o morto, guerras da máquina que atira, impedindo o olho humano ver a obra assassina ou a dor da vítima. E tudo começou com a bomba de Hiroshima…

Fidel Castro ordenava a execução dos que considerava “inimigos do regime cubano”, Estados Unidos e aliados invadem países indefesos, matam inimigos da “civilização ocidental”. Por que, então, tanta estranheza quando o Irã e a Coréia do Norte decidem fabricar a bomba atômica, alegando defesa contra inimigos? O mundo suicida-se de seu consenso hipócrita, da moral ambígua que dita normas insustentáveis e políticas pérfidas.

Teriam alguma razão os moços que, sensibilizados com animais, sentem tanto desprezo pelo ser humano? Se os moços estiverem certos, o que fizemos do mundo? Bom dia.

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