Sem régua e compasso

picture (59)Aristides Gianetti foi empresário influente em Piracicaba, um dos líderes da família tão conhecida. Bonito, elegante, ar mnatgreiro, Aristides foi dono, engtre outros empreendimentos, de A Brasserie e do Hotel Central, ambos desaparecidos. Foi em meados dos 1940 e não entendi quando – desajeitado, mas sorrindo – ele me abraçou. Foi quase à frente da “bombonnière” do Passarella, também desaparecida, ao lado de onde, neste 2009, está o Banco Itaú.

Entardecia, eu retornava da escola, o Externato São José. Eram tempos tristes e eu sabia que, em casa, soluços abafados de meus pais – ainda pranteando a morte da filhinha – misturavam-se aos sons de sonatas de Chopin, afagados, ao piano, pelos dedos de minha irmã Leninha. O sorriso de Aristides Gianetti destoava daquele quadro de dores. Então, vi meu pai, também sorrindo, como que espiando da esquina. Algo novo e bom iria acontecer, senti.

Depois de abraçar-me, Aristides Gianetti me pediu abrisse uma caixinha que me dera. Era um relógio de pulso. Não acreditei. “É seu.” – falou. Meu pai também me abraçou, explicou-me: eu iria ser “lowton” e Aristides era meu padrinho. Não era bem um batizado maçônico, mas algo parecido. Haveria festa na Loja Maçônica, como que uma festa de adoção. E foi um misto de medo e de orgulho o que – antes dos meus dez anos e ainda de calças curtas – fez galopar-me o coração. Não perguntei a meu pai ou a Aristides, mas sei que tive vontade: “Eu vou ser ´bode` também?”

A “Loja” era o templo dos “bodes”. E eu ouvia nas ruas, na escola, em cochichos das mulheres que meu pai era “bode”, “bode preto”. Logo, eu era “filho de bode”. Ser “lowton” era ser “adotado pela Loja”. Meu coração exultou: além de ser Tarzan, eu iria participar daquele mistério, desvendar segredos que, quanto mais coisas se inventavam, mais me atiçavam a imaginação. Na “Loja” – diziam – havia um lugar com bodes de verdade, vivos, para serem sacrificados pelos maçons em rituais pagãos. Num altar imitando o templo de Salomão, matavam-se bodes, bebia-se o sangue deles para se tornarem bodes também. Entre os salesianos, alguns anos depois, um professor de religião garantiu-nos haver um deus maçônico – misto de cabra e bode – de nome Baphomet, adorado desde os tempos dos templários. Eu sabia ser mentira, mas fiz figa – credo em cruz!

Subi aquelas escadarias da rua Santo Antônio, querendo ver o olho dentro do triângulo, procurando um servente de pedreiro que me mostrasse a régua e o esquadro, o compasso e o nível, instrumentos de todas as magias. Em cada degrau, eu me sentia levado por Mandrake ou pelo gênio da lâmpada. Então, passamos, as crianças, por homens perfilados que – já não me lembro com nitidez – pareciam cruzar espadas. As esposas dos maçons sorriam e havia aventais e pedaços pequeninos de pão e alegria e proteção. Eram o mistério e o segredo: a acolhida, a generosidade. E não vi bodes.

Até o fim de seus dias, meu pai falou da maçonaria com enlevo. E, quando se dizia que maçons eram excomungados, cheguei a pensar fosse, a excomunhão, algum prêmio. Pois o meu pai era bom e justo. E, quanto mais se falava de hereges e de ateus, mais eu me emocionava à visão de meu pai – solitário e amoroso – olhando para a imagem da Virgem, nos altos do Lar Escola, em silenciosa oração. Ainda hoje, quando passo por lá, olho para os altos, a vontade de perguntar à santinha: “meu pai, cadê?”

A “Loja” – restaurada, bela, serena – passou a abrir-se a todos os piracicabanos, um espaço de convívio e de cultura. Uma história – que lhe impregnou paredes, colada em seu chão – parece oferecer-se à comunhão e ao aconchego. Folhas de acácia? Preciso atravessar aquela porta. Fui apenas “lowton” e nunca, outra vez, subi os degraus do templo. Sei que algo do menino ficou lá. Talvez, a régua e o compasso que, naquele dia, não encontrei. Escrever sobre isso em pleno Carnaval? Pois é. Não há dia nem tempo para a saudade. Bom dia.

Deixe uma resposta