Ser feliz com a paz dos pântanos

O texto foi publicado no dia 8 de agosto de 1979 em “O Diário” e depois selecionado para o livro “Bom Dia – Crônicas do Autoexílio e da Prisão”, lançado em 2014

O velho, gordo e rosado burguês cumprimentou, eufórico, um dos redatores de O Diário: “Agora, sim. Agora, a cidade está calma e em paz”. Quis ele referir-se à minha ausência. E se pensou em magoar-me, conseguiu. Magoei-me por ele, o gordo burguês, estar feliz com a paz dos pântanos e a calma dos cemitérios. E, quando a burguesia se sente satisfeita e segura, é porque algo vai mal. As cidades têm donos e, se eles se sentem satisfeitos, o povo é que não está bem. Se há calma é porque há silêncio. E se há silêncio, este pode ser consequência da mudez. Um povo mudo é povo morto. O gorducho me magoou por estar satisfeito, mas, com sua satisfação, deu-me um prêmio. Pois, se está feliz com minha ausência, isso significa que eu incomodei. Cumpri, pois, minha missão.

A burguesia adora as pessoas boazinhas, silenciosas, pacatas, omissas. Se o gordo, velho e rosado burguês está feliz com minha ausência é porque não fui bonzinho, silencioso, pacato, omisso. Incomodei. Estive, portanto, vivo. E quero continuar vivo para chegar a ver burgueses chorando sobre as próprias insensibilidades e seus desatinos. Vou chorar com eles. O triste é que, por causa deles, seremos todos atirados à mesma vala comum, sem exceções e sem avaliações de méritos. Quando um edifício cai, os tijolos não escolhem cabeças. E a casa está caindo. Diante de nossos olhos. Os miseráveis já não suportam a sua própria miséria e nada mais têm a perder.

Há dois tipos de homens de que se deve ter medo: os que têm muito a perder e os que nada têm. Os que têm tudo lutam até o fim para manter seus privilégios. Os que nada têm serão ferozes quando lutarem, porque nem mesmo à vida chegaram a ter direito. A história existe para ser vivida, para servir de lição e de modelo, não apenas para ser lida. Quantos Marias Antonietas e Nicolaus não estão por aí, mandando o povo comer bolos se não tem pão, encurralando-o às masmorras da vida? Quando as cabeças rolarem, o choro deve ser apenas por causa da burrice. As empregadas domésticas estão por aí, vendo as sobras de comida sendo jogadas ao lixo, a fartura de cobertores cheirando a naftalina. Enquanto vêem o suor limboso dos gorduchos que suam sentados em poltronas, elas suam o suor dos que têm fome e dos que têm sede. Não apenas de pão e de água, mas especialmente de justiça. Vêem o leite de nossas crianças sobrando nas xícaras fartas, e choram pelo leite que falta aos seus filhos famintos. Choram pela comida que sobra nas lixeiras. Leuquêmicas, choram diante da flacidez das madamas que vão queimar suas gorduras em institutos de fisioterapia.

É irônico que, num mundo de fome, os burgueses façam regime para emagrecer. As calorias que lhes sobram são as que faltam nos anêmicos. Tudo o que nos sobra é o que está faltando nos outros. E tem-nos sobrado muito, o que significa que, a muitos, falta também muito.

Os veterinários estão enriquecendo-se com cachorrinhos de estimação. Enquanto isso, os abrigos de menores não suportam mais o número de criancinhas miseráveis. E o gordo, velho e rosado burguês está feliz com sua paz dos pântanos e seu silêncio de sepulcro. Quero estar vivo para vê-lo chorar. Para chorarmos juntos. Pela inutilidade de seu silêncio. Pela inutilidade do meu grito rouco. Bom dia.

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