O lento renascer

O texto foi publicado no dia 11 de março de 1982 em O Diário e depois selecionando para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Então, consegui fazer a prece de que me esquecera. E senti ser-me possível escrever o poema que estava apenas dentro de mim. E, também, compor a canção que nunca soube fazer. Redescobri, mais uma vez – como se fosse lição permanente, mas que hesito em aprender – que a presença de Deus na vida dos homens é invisível e que, tolamente, deixamos de vê-la porque queremos seja, ela, palpável. Não se vê, mas existe. Não se percebe, mas está. E, quando mais parece distante e inacessível, eis que surge próxima e envolvente.

Há, sim, porque dar graças à vida. E há respostas para todos os porquês e para quês. Basta apenas seja feita, a pergunta, sem dores na alma ou sem cansaços aparentemente mortais. Daí, a resposta virá. Pois quando se pergunta pelo absoluto, a resposta está no próprio absoluto. Bastou-me o soluço escapar-me da garganta – soluço de alegria e de esperança – e me veio, aos lábios, a oração de que me esquecera. E me senti capaz de escrever o poema que me escapara e, até mesmo, compor a canção que nunca soube expressar.

Eu estava, sim, morrendo. De agonia lenta, de decepções amargas, o sentimento de inutilidade de tudo e da esterilidade das lutas, a consciência de que os anos lá se tinham ido e nada restara ou sobrara. Nada disso, porém, existia e, se existisse, era o que menos me importava. Faltava-me paz. E nenhum homem pode ver qualquer sentido na vida se não estiver em paz consigo mesmo. De vez em quando, penso que Deus brinca comigo como um pai humano brinca com uma criança, fazendo-a erguer pesos para testar-lhe a força. Em mim, é-me testada a fé. E os temporais me apanham em momentos de mar sereno e calmo, de águas mansas nas quais – por, talvez, acostumar-me com a serenidade – deixo de velar. Nunca sou apanhado na plena batalha. Mas sou atingido quando penso estar em repouso e em paz. Fica-me, com isso, uma lição, a de que – quando a vida desliza em paz – é preciso, então e mais do que nunca, agradecer.

Acostumei-me, em meu autoexílio, à placidez, à falta de desafios, à calmaria dos meus mares e devo ter cochilado, deixando de agradecer. O desafio apanhou-me em cheio e me prostrou, sensação de desfalecimento, de impotência e de desmaio. Eu pensava estar em paz, mas não estava. Por isso, vacilei. Então, a misericórdia paterna foi-me, ainda outra vez, revelada, e eu pude orar e até mesmo saberia fazer poemas e escrever canções. Mas, por quê, para quem, para quê? A resposta é simples e apenas uma: por estar vivo. E, quando não se consegue erguer um tijolo, pode-se colocar pelo menos uma pá de cimento. Bom dia.

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