Tônia, 90

Não conheci, na vida, mulher tão linda quanto Tônia Carrero. Ela transudava, exsudava luminosidade. Não sei se de raio de sol, se de luar encantado. Os imensos olhos azuis, o sorriso, os gestos… E as mãos, mãos de Tônia. Era como se flutuassem no ar, delicadas, de brancura sem mácula, suaves, macias. Ela me sorriu, estendeu-me a mão no gesto majestático de quem a oferecia para ser beijada. Beijei-a. E saí correndo.

Eu tinha 16, 17 anos. E me apaixonei perdidamente por Tônia Carrero. Aliás, eu me apaixonava a cada mês: Caroline de Mônaco, Brigitte Bardot, Marilyn Monroe, Ava Gardner, a Shirley de Cosmópolis, a Mariazinha de Bauru. Mas a paixão por Tônia foi alucinante. Nela eu – já decidido a ser escritor – me completava. A mulher ideal: bela, carinhosa e grande atriz. Tracei meus planos. Escreveria, para ela, uma grande peça teatral, a mais bela jamais escrita.

Piracicaba, nos 1950, era um centro de atividades culturais borbulhante. E João Chiarini, o grande agitador. João, amigo de meus pais, não saía de nossa casa e, vendo-me candidato a escritor, estimulava-me escandalosa e mentirosamente: “É o novo Jorge Amado!” – bradava. E, vendo os rabiscos de Ermelindo Nardin, agitava-se: “É o novo Picasso.” E lendo os poemas de Marisa Bueloni, exaltava-se: “É a nova Gabriela Mistral.” Um delicioso mentiroso que, no entanto, impulsionou carreiras e estimulou uma juventude sedenta de arte e saber.

Naquela noite, a já celebérrima companhia teatral de Adolpho Celi, Tônia Carrero e Paulo Autran – CTCA,egressos do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) – iria apresentar-se no Teatro São José. E a peça, das mais instigantes: “Entre Quatro Paredes”, o espetacular drama de Jean-Paul Sartre, “Huit Clos”. Sei lá como, o João Chiarini me levou a assistir. Eu tremia: Tônia e Sartre, o que poderia haver de mais excitante? Quase enlouqueci e me vi escrevendo peças, todas elas para Tônia. (E nenhuma para Paulo Autran, que se sabia ser namorado dela.)

Adolescentes deliram e enlouquecem. Fiquei maluco, meu peito querendo explodir.

Então, quando a platéia esvaziou-se, fiquei do lado de fora, espiando, escondido, para ver Tônia mais de perto, saindo do teatro. João Chiarini me viu e gritou: “Turquinho, venha aqui, rapaz. Vou lhe apresentar a Tônia.” Eu não conseguia me mover, paralisado. De deslumbramento, de paixão, de incredulidade. E de medo. João quase me arrastou e Tônia, ao me ver – garotão, tímido e indefeso – me sorriu e estendeu a mão, a mão direita, não me esqueço. Rainha, ela me conferia o privilégio de lhe beijar a mão. Toquei em seus dedos, aproximei os lábios que não conseguiram chegar à sua carne. E saí correndo, apavorado, tremendo de medo daquela mulher que se tornaria a mais bela e inconclusa paixão de minha vida. Ela e Ava Gardner.

Agora, minha amada faz 90 anos. Assisti a todas as representações dela que pude. Ia ao Rio de Janeiro, a São Paulo, mas não conseguia vê-la em novelas. Comecei a escrever três ou quatro peças teatrais para ela, imaginando-a no palco com obra de minha autoria. O povo aplaudia e ela, Tônia, me chamava para receber a ovação a seu lado. Tudo era mágico, um mundo de fantasias que se tornava real de tão belo. Nunca tive desejos carnais por Tônia Carrero. Eu simplesmente a amei apaixonadamente, como se ama uma miragem, uma deusa.

Quando ela completa 90 anos, volto a beijar-lhe a mão. Vejo-a luminosa, resplandecente, bela, no hall do Teatro São José. Beijo-lhe a mão e, em vez de sair correndo, fico em meu canto, rendendo graças por ter conhecido tempos tão generosos e gente verdadeiramente humana. Ave, Tônia, minha eterna e etérea bem amada. Bom dia.

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