Tudo como d´antes no quartel de Abrantes

Jaime Pereira, fundador da Cicat, foi muito mais do que um grande amigo meu. Jaiminho foi como um irmão, amizade que se iniciou nos 1960, quando o patriarca Abel Pereira, o velho, era o líder e referência moral de bairros onde ele exercia grande influência, Paulista, Jaraguá, Vila Cristina. Português da velha e boa cepa, o patriarca Abel Pereira era homem do fio de bigode, da palavra dada. Em sua casa sóbria, ele recebia o povo que o buscava para aconselhar-se e pedindo resoluções de problemas.

Quando Jaiminho ingressou na política, como vereador, seu temperamento se revelou ainda mais intransigente, moço feito de indignações. O velho Abel Pereira era admirador e fiel companheiro de Salgot Castillon, a quem devotava lealdade plena. Jaime Pereira seguiu os passos, esbarrando, como vereador, na turbulência de Luciano Guidotti, também um temperamental. Aliás, à distância, chego a pensar que não eram as pessoas, mas os tempos, os temperamentais. Os bairros, na área da Paulista, tinham lideranças fortes: Abel e Jaime Pereira, Jorge Antônio Angeli e o líder refinado João Pacheco e Chaves.

Os maus ventos sopraram sobre a família Pereira e as dificuldades surgiram. Jaime se meteu em empreendimentos em Mato Grosso, afastando-se da família, trabalhando com esforços sobre-humanos. Ele, que se tornaria um homem riquíssimo, tinha fihos pequenos, a família com dificuldades. Certa vez, chorando, me telefonou de Mato Grosso, numa ligação quase impossível, tão poucos eram os recursos de comunicação. Pedia-me, como amigo, fosse em socorro da mulher, pois haviam cortado a água e a luz da casa. Socorríamo-nos uns aos outros, numa época de solidariedade comovedora.

A corrupção não é fenômeno novo no Brasil. Apenas se institucionalizou, expandindo-se como se fosse uma pandemia. Quando, com o velho Chico, Jaime Pereira criou a Cicat, para ele ficavam apenas as sobras de outras empreiteiras que eram privilegiadas pelos amigos do rei. Jaime não se conformava, pois tinha sido político, tivera mandato. E, a pouco e pouco, começou a descobrir o caminho das pedras. “Ou faço parte do esquema ou eles me destroem.” – falava. E o esquema, já então e muito antes até, era formado por comissões, por propinas, pela corrupção que atinge até a medula da administração pública brasileira. É tanta e tão disseminada que basta ver-se uma obra pública para se desconfiar do que está por trás dela.

Uma tarde, em seu escritório na Cicat, Jaime Pereira me telefonou pedindo-me fosse até lá, pois iria mostrar-me algo importante. Ele estava furioso, mais temperamental do que nunca, o sangue português fervendo-lhe na carótida. Um de seus engenheiros estava ao lado e seria o portador de coisas que estavam dentro de caixas de sapato. Jaime, como que enlouquecido, abria caixa por caixa, todas cheias de dinheiro: “Esta é para prefeito tal; aquela é para o prefeito qual; esta outra é para o secretário de tal cidade. São todos uns filhos da p…” E assim foi indo, desfiando o seu rosário de imprecações. E desabafando: “Como é possível ser honesto neste país e com estes políticos? Se eu não der propina e comissões, a empresa concorrente dá. É um círculo vicioso.”

Jaime Pereira não suportou e deixou a empresa para os filhos, buscando viver uma velhice mais serena, distante das sujeiras das relações empresas/políticos. Infelizmente, a doença o atingiu no cérebro e lá se foi meu amigo, antes, antes de ver tudo o que aconteceu depois. E que ainda acontece.

Esta reflexão é para colaborar no sentido de o brasileiro, como cidadão, voltar a ter vergonha na cara. O que acontece em Brasília é destaque por se tratar de questões de âmbito nacional. Mas a mesma sujeira acontece em municípios, em câmaras municipais, em obras públicas das cidades grandes, pequenas e médias. É como se, nas cidades interioranas, não houve políticos de oposição, nem Ministério Público, nem OAB. Que pena. Mas a verdade é que está “tudo como d´antes no quartel de Abrantes.” E bom dia.

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