Um homem dividido

RonaldoNo final, no final das coisas, estou desejando, quase ardentemente, que o Ronaldo Fenômeno se aposente em definitivo. Pois nunca imaginei isso pudesse acontecer, mas passou, ele, a ser um homem me atrapalhando a vida. Fico fascinado, imantado, quase que uma espécie de devoção. E, então, basta saber ou desconfiar que ele irá jogar – pois entra em campo tão pouco que parece viver um hobby – que sinto excitações diferenciadas, uma certa palpitação, ansiedade indefinível.

Ora, bolas. Antes do Ronaldo e sem ele, meus fins de semana eram serenos, tépidos, de emoções ternas. Afinal de contas, homem e mulher, casados – mas morando em casas diferentes e encontrando-se, apenas, nos fins de semana – têm direitos e privilégios especiais, muita coisa a contar um ao outro, muita coisa a fazer. Ternura, afeto, a música no ar, a conversa amena, o amor, exercícios de contemplação e de plenitude, os livros, as leituras, as invenções de mundos que nada têm a ver com a loucura suicida desses estéreis mundos exteriores. E escrever, escrever sabendo haver alguém que zela, que cuida, que vela.

Sem o Ronaldo, tudo isso é possível, realizável, factível. Sem o Ronaldo, há vida interior, música no ar, sonhos realizados, esperanças alimentadas, anseios pacificados, alegrias vívidas e vividas. Com o Ronaldo, porém, tudo se complica, tudo se transforma, delícias transformadas em horrores, sossego da paz invadido pela tensão de guerras, de disputas e de confrontos.

Fico nervoso, apenas ao saber que o Ronaldo Fenômeno irá jogar pelo meu Corinthians amado e idolatrado, salve, salve. Desde a véspera, começo a ter palpitações. Pela manhã, conto as horas. Ao almoço, evito comer muito ou relaxar com aperitivos, receoso de que essa lassidão burguesa me tire o élan da grande expectativa do espetáculo. E, a partir daí, fico contando minutos, deixando de ouvir o que minha mulher diz, indiferente até a carinhos ou ternuras, esquecido do que eu estava escrevendo ou lendo ou da música no ar. Então, faltando poucos minutos para a entrada triunfal de Ronaldo Fenômeno, minha mulher, compassiva ou conformadamente, me fala: “Tudo bem. Vá lá ver seus homens, vá lá ficar babando pelo seu homem preferido.” Ela se refere a meus jogadores corintianos, a meu Ronaldo. E eu fico feliz.

Ver Ronaldo marcar um gol, mesmo sendo anulado, vale mais do que a coroa da Rainha Elizabeth. Mas, depois, quando o jogo acaba, fico com remorso, a consciência pesada, um sabor estranho de fel e de amargura na boca. E, na consciência, a pergunta que me tira a paz: “Estarei traindo, com Ronaldo, minha mulher, meus filhos, meus neto?”

Sou, pois, um homem dividido. Prometo ser mais comedido da próxima vez, prometo não cair em tentação. Mas, antecipadamente, sei que serei derrotado. A minha sorte é de que minha mulher compreende isso tudo e perdoa. Ela sabe que Ronaldo está em fim de carreira. E aposta nisso. Bom dia.

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