Uma “foia em vermeio”

“Tempus fugit…”, a sabedoria lá nos vem, ainda e sempre, dos antigos. Vai-se o tempo, passa-se o tempo, que vai e não volta e lá nos vamos com ele, diz também o povo de todas as épocas. Na verdade, não acredito nisso. Mas acreditar não é ciência. E, por isso mesmo, talvez seja mais importante, pois é conhecimento do coração. Há a frase de Virgílio, ainda mais inquietante: “Fugit irreparabile tempus”, foge o irrecuperável tempo.

Prefiro crer num tempo fixo, imutável e que somos nós a passar por ele. Fica mais fácil e inventar não custa nada. Confesso, porém, que, quase sempre, me espanto ao perceber que há, sei lá, um tanto tempo que passou ou se fui eu que tanto passei por ele. Agora mesmo, nestes tempos de contatos imediatos pela internet, um leitor, o Gildo Côa Calderan, me escreve lembrando que foi – ora vejam! – entregador na minha velha e querida “Folha de Piracicaba”, um dos jornais com uma história, ainda que rápida, das mais épicas em Piracicaba. E Gildo se lembra de que foi a Folha, o primeiro jornal a ter título impresso em vermelho em nossa terra. Digo mais: foi o primeiro jornal a tirar uma edição em cores, de maneira artesanal, primitiva, mas linda. A criação foi de um impressor genial, o Santista, sabe-se lá se ainda está vivo, por onde anda. O Santista, num Natal, depois que inventei tirar uma edição em cores, preparou os clichês com recortes de linóleo, pois não tínhamos clicherias. Inventamos, no linóleo, uma árvore de Natal e a edição saiu colorida, passando folha por folha na velha impressora manual.

Mas, voltando à observação do Gildo, que está com 62 anos segundo ele próprio, e suas lembranças como entregador da Folha. Aquele jornal fora uma desastrada criação de uns 30 empresários dos mais poderosos de Piracicaba, liderados por Luciano Guidotti, que estava aborrecido com os outros dois jornais da cidade, o Diário e o Jornal. Mas a opção foi desastrosa: Domingos José Aldrovandi, um dos sócios e presidente da nova sociedade, contratou um velho amigo seu, metodista, jornalista na cidade de Araras. Era o prof.Waldemar Arruda, cujo maior feito jornalístico fora o de ter sido eleito “Foca do Ano”, como correspondente da Folha de São Paulo.

Pois bem. Waldemar Arruda ficou encarregado de montar o jornal, comprando maquinário, organizando instalações, essas coisas. Mas ele não tinha experiência alguma. E, enquanto o Diário de Piracicaba, com Sebastião Ferraz – e eu já estava lá, como redator, em 1961 – tinha rotoplanas, clicherias, Waldemar Arruda comprou uma impressora plana, que imprimia o jornal folha por folha, cada duas páginas. Imprimia-se a frente, esperava-se secar, colocavam-se mais duas chapas com letras de chumbo, imprimia-se novamente. O processo, para um jornal de oito páginas, levava quase 10 horas e é dificílimo contar como acontecia, tão dinossáurico parece o processo.

Aconteceu, no entanto, que Luciano Guidotti, como principal acionista, teimou, insistiu e exigiu: queria que o título do jornal saísse em vermelho. “Quero a Foia com título em vermeio”, determinou. Foi uma loucura. Os tinteiros da impressora tinham que ser lavados todos os dias, sem qualquer resquício de tinta preta. Depois de limpos, colocava-se a tinta vermelha, rodava-se a capa do jornal, toda em branco, apenas com o título “Folha de Piracicaba” em vermelho, deixava-se para secar, lavavam-se os tinteiros novamente. E Luciano ficava feliz: “Num disse que dava para fazer a Foia em vermeio?” Deu, mas durou pouco, pois era trabalho para 24 horas, exigindo um batalhão de gráficos, aprendizes, ajudantes. Num depósito, ficavam as folhas impressas à espera de, novamente, serem colocadas na máquina. Para se imprimir, por exemplo, quatro páginas, havia necessidade de três impressões, folha por folha, manualmente: a do título em vermelho, a da primeira e quarta páginas e, finalmente, invertendo o processo, a impressão das páginas 2 e 3.

Precária, pobrezinha, sem recursos, a Folha, no entanto, fez uma verdadeira revolução jornalística em Piracicaba, abrigando uma juventude corajosa, valente, eu diria que heróica, a partir do golpe de 1964, quando nos tornamos o ponto principal, em Piracicaba, da resistência à ditadura. É-me, hoje, quase impossível acreditar que tudo aconteceu de verdade e que não foi sonho, nem pesadelo. Ou melhor: um sonho que levamos até o fim. Noivo de Mariana, cunhada de Wilson Guidotti, filho de Luciano, fui convidado a ajudar na criação da Folha, deixando O Diário no que me parecia um tempo apenas provisório. Acabei ficando, tornando-me diretor dela apenas com 21 anos. E lá, então, começou a história que, felizmente, ainda não acabou. Tudo por culpa de Luciano, que quis a “Foia de Piracicaba em vermeio”. Passei pelo tempo, o tempo passou? Bom dia.

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