Vagamundeando…

Banco de praçaNos 1980, cansado de tantas lutas que passaram a parecer-me inúteis – condenado à prisão domiciliar, enquanto os bandidos da política continuavam à solta – resolvi ir-me embora. Descobri uma pequena chácara em Valinhos, minha então mulher – e mãe de meus filhos – gostou e resolvemos iniciar nova vida, no recolhimento. Foi então que recebi a visita de um homem admirável, o jurista Luiz José de Mesquita, cuja ausência ninguém preencheu.

Sábio e de cultura universal, ele era – antes de mais nada ou por isso mesmo – um homem simples e humilde. Sentado na varanda, à minha espera, a valise pousada nos joelhos, ele nem sequer quis entrar na casa. Pediu-me que me sentasse a seu lado e, por alguns instantes, olhou o vazio, as flores e plantas do jardim. Falou-me: “Não faça isso. Você se arrependerá e nunca poderá reparar o erro.”

Deu-me seu testemunho de vida. Ele, também amargurado e com ambições intelectuais, deixara sua pequena cidade interiorana. Mas levou-a consigo, em suas lembranças. Muitos anos depois, quando retornou, nada encontrou do que existira. “Cadê o banco de jardim onde tomei a mão da primeira namorada? E a árvore, atrás da qual vivi o tremor do primeiro beijo? E a outra, onde fazíamos xixi?” – ele se perguntava. E tudo tinha desaparecido,acabado. O dr. Mesquita me falou: “Fique e acompanhe. Tudo acabará mas você estará presenciando, será parte disso, testemunha para contar.”

Fiquei. E acompanhei mudanças, transformações, devastações, destruições. E ainda acompanho. Penso em Noedy Krahenbuhll Costa – jurista, um dos mais cultos piracicabanos – andando pelas ruas da cidade, catando pregos, penas de ave que ia encontrando como se recolhesse tesouros abandonados. E de Jacob Diehl Neto que quis e conseguiu: “Sou como o riacho Itapeva, que nasce e morre em Piracicaba.” Nasceu e morreu na terra querida.

Recolhi, tenho informações, mas evito sair. A devastação dói. Lembro-me de quando telefonei para João Chaddad – há alguns anos, quando eu ainda acreditava no idealismo dele – e lhe pedi para evitar a tragédia prestes a acontecer: “João, na avenida Rio das Pedras está a última “santa cruz”, agora urbana, a “Santa Cruz do Rolador”. Eles querem destruí-la para dar passagem a um condomínio.” João riu ao telefone, até hoje não sei se zombando de mim ou fingindo interesse. Aquela “santa cruz” era reminiscências das que se colocavam à margem das estradas, em homenagem a algum tropeiro ou caminhante morto. A do Rolador, estava em área já urbana, um privilégio histórico. João não fez nada. A preciosidade foi destruída como se fossem tijolos velhos e inúteis. João abriu espaço para um condomínio, alguns ganharam, a cidade perdeu. E eu entendi os novos tempos, de cinismos e de oportunismos.

Na verdade, estou querendo dizer que, mesmo recolhido, costumo – muito de quando em vez – sair por aí, como cão vira-lata que percorre ruas, fuçando aqui, fuçando ali. Enquanto o mundo todo – incluindo as principais capitais – buscam revalorizar os centros históricos, Piracicaba entregou o seu, durante o dia, aos automóveis. E, à noite, aos fantasmas. A Praça José Bonifácio, à noite, é tétrica, como se os fantasmas do Comurba estivessem pairando sobre ela. E, durante o dia, tornou-se um mafuá, de ambulantes que esperam atender os clientes de bancos.

Dia desses, vagamundeei por aí, pelo centro, durante a tarde. Tornou-se um grande estacionamento e um corredor de veículos. Onde foram parar a “Calçadinha de Ouro”, a “Nova Aurora”, o “Vosso Pão”? Vi-me como o dr.Mesquita, retornando ao vazio. E o solar do Barão de Rezende, tornado estacionamento para a Câmara? E as portas da Catedral, fechadas aos fiéis durante o dia? É como se houvesse horário especial para os fiéis, contrariando a “porta aberta” cantada por Vicente Celestino: “Porta aberta, tendo o emblema de uma cruz/ esta porta não se fecha/ contra ela não há queixa/são os braços de Jesus”.

Claro que tudo mudou e que ainda mudará. Mas fico imaginando se o Coliseu, se o Arco Triunfo, se a Estátua da Liberdade estivessem em Piracicaba. Certamente, seriam derrubados para dar espaço a estacionamentos, condomínios, avenidas. Felizmente, Deus me inspirou e eu tenho guardados em meu jardim alguns tesouros: um tijolo do antigo estádio do XV, na rua Regente Feijó; a placa do Hotel Central, onde estava escrito “Praça da Catedral”; uma pedra do Itapeva; uma pedra do rio; telhas da olaria de minha família na rua do Porto, onde agora só há duas chaminés. Se tudo acabar, terei guardado um pouquinho.

Pelo menos alguma coisinha o gato não comeu. Ainda. Bom dia.

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