Vestes sacramentais

Com o tempo, passei a precisar cada vez mais de preâmbulos. E, em vez de perturbar-me, essa necessidade pacifica-me. Pois, se escrevo para os vivos, preciso explicar essa minha teimosia de resistente. Insisto em viver. Por teimosia. Assim, tudo meu deve soar de profundezas abissais. A razão é simples: não mais estou pensando, mas apenas sentindo. E quem sente – sei-o – deveria recolher-se ao alto da montanha, onde povos indígenas recolhem os seus velhos. Tenho minha montanha. E, se não é dela que falo e onde me vejo como pajé, é nela que me transformo em feiticeiro.

Assim, preciso de preâmbulos. E, hoje, esse é para dizer de vestes, de minhas vestes nupciais. Tenho diversas delas nos escondidos dos baús de minhas lembranças. Assim, vejo-me como um homem feito e construído por e de liturgias.Confesso, pois, minha rendição ritualística. Minha alma tem vestes.

Preâmbulo semelhante levou-me a explicar o meu voto em Lula. Foi uma questão de fé, de esperança e, portanto, algo que não se explica. Para votar em Lula, vesti-me com minhas mais elegantes roupas esportivas, ao estilo “casual chique”. Preciso acreditar. E, quando acredito, amo e me entrego apaixonadamente. Nem sei em que acredito, mas acredito. Vai daí, pois, que tomo posse e me dou, entrego-me e tomo-me. E consigo viver maravilhas da paixão.

Em preâmbulos, busco contar. Votar em e por Lula fez parte de um meu ritual da vida, de minha arrogante presença no mundo. Lula foi e ainda é, para mim, um mistério. Mais um. E – após sofrimentos tantos e angústias sem fim – aprendi a render-me àquilo que não entendo mas que me deslumbra. Foi assim na minha Primeira Comunhão. Eu tinha seis anos. Falaram-me que eu iria comer Cristo, colocaram-me roupas brancas e festivas. Engoli a hóstia, nada percebi de diferente. Mas inventei uma explicação para o meu devaneio: comendo a hóstia, eu engolia minha própria carne, engolia-a e, depois, voltava a ser ela de novo: eu, comendo-me, era eu mesmo.

Muitos anos depois – quando aquela fé se me escapou – vivi um inesquecível momento de conversão. Em meio a uma quase multidão, meu amigo e eu batemos de frente com a divindade. Foi, para nós dois, um encontro solitário. E nos tornamos cúmplices da revelação de Deus. Nosso ateísmo rompia-se. E a descoberta do divino nos inundava. E era uma inundação de luz. Então, meu amigo e eu – convertidos – combinamos, como que num revolucionário ato de fé, que iríamos viver a Eucaristia,na fila da comunhão, vestindo as nossas melhores roupas. E cobrimo-nos com ternos e enlaçamos as gravatas. Era um ritual. Usamos roupas de gala para nos dizermos, talvez, o que descobríamos: a fé não se explica.

Todo esse preâmbulo é para dizer que – passadas as decepções – acho que recuperei as vestes sacramentais cívicas, as vestes nupciais de minha alma com o Brasil. Volto a crer, emociono-me por novamente acreditar, apesar de políticos, de política, de farsas, das obscuridades do poder. Ora, eu preciso do carisma, tenho fome e sede de carisma. Não supor mais essa gente apenas especializada nisto ou naquilo, não suporto mais gerentes, racionalistas e racionalismos. Quero o líder carismático que – como Juscelino fez acontecer-me na alma na minha juventude – devolva-me a coragem para acreditar na incógnita, fome de esperança, sede de tentativa.

Passado o susto de mensalões e de sujeiras, não me arrependo de ter votado em Lula. Para mim, ele foi o sonhador apanhado pela traição. Esse amor de Lula pela gente humilde emociona. E contagia. Não por pensar, mas por sentir, percebo a vida nova brotando da alma do povo. Já tirei do baú minhas vestes nupciais do amor cívico. Bom dia.

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