O churrasco e o defunto

picture (15)A meu lado, na praça do shopping, o amigo gorducho requebrava as banhas imensas. E lambia o sorvete com gula, acho que com lascívia e volúpia. Era um sorvete de creme com chocolate. Ele lambia o sorvete, lambia os beiços, lambia a casquinha. E fazia “hmmm”, como que gemendo de prazer. Então, ele escorregou.

Foi como um filme em câmera lenta. Eu o vi deslizar, escorrer, aquela massa de carne desabando, as duas pernas de coxas imensas tentando equilibrar-se, fechei os olhos. Daí, tchum: ouvi o barulho, como uma montanha de polenta esparramando-se no chão. Ou montanha de lazanha, sei lá. Quando abri os olhos, lá estava ele perplexo, estirado, olhos arregalados e – ai, desgraça infinita! – o sorvete enfiado na cara. Não agüentei e explodi na gargalhada. E ele perdeu a amizade comigo. Pode?

Pois bem. Outra amiga muito querida quase também ficou de mal comigo. Estávamos à beira-rio, petiscando lambarizinho frito, bebendo caipirinha com chope. Era um entardecer bucólico. Então, a mulher deu um suspiro, falou: “Até hoje, ninguém consegue esquecer-se daquilo que aconteceu…” Estupidamente, perguntei o que havia acontecido. E, obviamente, ela contou.

A família morava numa cidade pequenina e ia acontecer o casamento da filha do “Lolô de Cima”, poderoso fazendeiro da cidade. Ele era “de Cima” porque havia um outro Lolô, o “de Baixo” Festa marcada, convidados, banda preparada, a cidade excitada. Casamento na igreja, no civil e, depois, grande churrasco no salão de festas da igreja. E não é que, à véspera do casamento, o Lolô, pai da noiva, teve um infarto?

Minha amiga limpou uma lágrima: o “Loló de Cima” era seu irmão. Que a mãe da noiva chamou o marido de “espírito de porco, por que não esperou o casamento para, depois, enfartar?” A cidade entrou em pânico: haveria casamento? E, se houvesse, seria mantida a festa? A família convocou o padre, o médico, o juiz e o delegado para discutir a questão. E o churrasco, a festa de arromba? E o povo, com a fome que estava? O padre decidiu: “Lolô de Cima” está sedado, nem sabe o que acontece. Em nome de Deus e dos homens, que se faça o casamento.”, decretou.

Mas, por volta do meio-dia, o médico avisou: o “Lolô de Cima” acabara de morrer. E a cidade já sentia o cheirinho de churrasco no ar… O padre voltou a outras sábias ponderações: “Lolô de Cima já estava morto, que se rezasse pela alma dele, Deus o acolhesse.” Pois, do céu, ele já estava abençoando o casamento da filha. Então, que se fizesse o casamento e que o juiz, o médico e o delegado se fossem revezando para guardar o defunto.

Decidiu-se, também por unanimidade, que haveria churrasco e, apenas depois, mais à noitinha, o povo saberia da morte de “Lolô de Cima”. E assim aconteceu. A moça casou, a banda tocou, a churrascada aconteceu e, em dado momento, todos os convidados saudavam o “Lolô de Cima”, com copos de cerveja e de chope. Foi quando o padre se lembrou padre se lembrou de que o “Lolô de Cima” estava morto desde o meio-dia. E que o juiz, o médico e o delegado, bêbados na festa, não tinham se revezado para guardar o defunto. Preferiu, então, não ser estraga-prazeres. Pediu outro pedaço de carne e deixou o “Lolô de Cima” em paz.

Não parei de rir, imaginando o homem sozinho no hospital, peladão, vela na mão… Minha amiga irritou-se: “Você se esqueceu de que ele era meu irmão?” O mundo perdeu o senso de humor. Bom dia.

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