“In Extremis” (186) – “Deus, Pátria e Família”
O responsável foi o Guto, meu inesquecível amiguinho de infância, Antônio Augusto de Souza Campos. Éramos inseparáveis, ocupando – com Cidinha e Zezo, outros amigos – os quintais de nossa infância. Queríamos ser os heróis daqueles quarteirões, transformando-nos em Tarzan, Jane e Boy. Ou em Tom Mix, Batman, Zorro. As ruas de Piracicaba eram o mundo encantado da criançada.
Lembro-me bem. Foi em 1949. Guto tentava encantar-me com as aventuras que ele dizia prometidas pelos padres salesianos, recém-instalados em nossa cidade. Iam inaugurar o Colégio Dom Bosco. E, segundo meu amigo gorduchinho, os alunos iriam ganhar um uniforme semelhante ao dos Cavaleiros da Távola Redonda. E, também, uma espada para cada um, como nos filmes do Rei Artur. Poderíamos, pois, duelar de verdade, não mais com aqueles espetos de madeira ou cabos de vassoura desengonçados.
Guto se enganara. Uniforme era exigido, sim: cor cáqui, gravata preta, botões que pareciam de guerreiros. Nada havia de heroísmo ou de aventura. Mas uma disciplina militar e bravezas clericais que até amedrontavam. Em especial, algumas palavras e imposições: inferno, purgatório, pecado mortal, obrigação de ir à missa, de fazer confissões.
Foi naquele colégio de tão amoráveis recordações que, pela primeira vez, ouvi falar em “Deus, Pátria e Família”. E do líder daquela lavagem cerebral: Plínio Salgado. E de sua filosofia, o Integralismo. Tratava-se, na verdade, do “Fascismo à Brasileira”, imitação do que o ditador Mussolini fizera na Itália. Pretendia-se uma cruzada cívico-religiosa com um propósito como que divinatório: extirpar o Comunismo que ameaçava o Brasil. Pois é… Como sempre.
A cantilena, porém, é, ainda, mais antiga. O nosso ex-soldado certamente não sabe, mas essa proposta salvadora – “Deus, Pátria e Família” – aconteceu no Século 19. E o profeta foi um pensador de nome Giuseppe Mazzini, criador da Itália republicana. Mazzini promoveu a sua santíssima trindade: Deus, a pátria e a família. Diferentemente, porém, do ex-soldado Bolsonaro, Deus, para ele, estava “acima de tudo”. E não, como pretende o ex-capitão, Deus estar “acima de todos” e o Brasil, “acima de tudo”. A premissa é tão absurda que se revela farsante.
A ridicularia é altamente perigosa. Pois o Brasil, envolvido por tal emocionalidade, está ameaçado por um fanatismo político já condenado pela História. Não se trata apenas da incompetência ou radicalismo de um só homem ou de um grupo de pessoas. Trata-se – e isso se tornou claro – de um movimento obstinado que traz de volta a inspiração do Fascismo. E é lamentável que se discuta a grave questão superficialmente. Pois – disfarçado por uma análise que apenas se refere à extrema direita – não se enfrenta a verdadeira face do projeto político que ressurge. O Fascismo foi, no passado, o nascedouro do Nazismo. E, por sua vez, é fruto de ressentimentos que envolvem atores da pequena burguesia, de políticos fracassados, de militares frustrados, de religiosos fanáticos.
Já aconteceu no passado. Mas parece erva daninha que renasce. E que, renascendo, se torna ainda mais resistente aos que a repelem. É um fenômeno mundial. O ex-soldado já revelou os seus parceiros: Trump, nos Estados Unidos; Putin, na Rússia; Erdogan, na Hungria. O lema “Deus, Pátria e Família” é a síntese de uma ideologia que se volta, ao mesmo tempo, contra o comunismo e o liberalismo. O perigo é maior do que tem sido avaliado. E não nos esqueçamos de já termos sido advertidos: a História pode repetir-se. E, em ocorrendo, será como comédia ou tragédia.
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