Guto, o amigo

Foto: Vitor J. Vilarinho/Olhares

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Viver vive-se vivendo (23)

Não saberei dizer quando Guto e eu nos encontramos, quando do surgimento de nossa amizade. E quanto de, em tão pouco tempo da infância e juventude, vivemos esse tesouro evangelicamente anunciado: “quem tem um amigo tem tudo.” Não sei e não me lembro do início, pois me parece ter sido atemporal, sem início e sem fim, amor completo, absolutamente honesto, acho que impossível de explicar em tempos de tanta malícia e genitalismos, de análises freudianas capengas. Guto e eu tivemos, na alma, o mais visceral de todos os amores humanos, amor de doação, de entrega, de companheirismo, de lealdade. E, por isso mesmo, assexuado. Ele era eu; eu era ele. Por isso, quando Guto morreu, morri junto. Ficou-me parte de mim.

Há poucos meses(2006), a viúva de Guto contou-me que, na tevê, está o filho deles, narrando campeonatos de tênis. Envergonhei-me de minha resistência diante da intuição, dos dons dos sentidos. Pois, toda vez que a voz desse Dácio Campos me alcançava a partir da televisão, eu me perguntava e me recolhia: “É a voz do Guto, a voz do Quico. E ele é Dácio é é Campos. Seria Dácio de Souza Campos?” Se fosse neto de Dácio e de Dona Nenê, seria filho de Guto. E, então, de qualquer e sob qualquer maneira, meu sobrinho. Pois Guto foi meu irmão. É ainda, aguardando-me em algum lugar do infinito para voltarmos a duelar com espadas de pau, personagens de histórias de capa e espada. Irmão, ele o foi mais do que se tivéssemos a mesma carne. Pois repartimo-nos em alma e coração.

Foi-me, a amizade com Guto, a primeira das grandes bênçãos que, sobre mim, foram-me derramadas. A inocência e a pureza de Guto – Antônio Augusto de Souza Campos – foram-me adubo do coração, abertura e revelação de alma. Sei lá se há, hoje, quem entenda, nesses tempos estúpidos de materialismos sem fim, sofrimentos de humanos que se confundem com bichos. De minha parte – nesse tempo de rebuscar o que se guardou em fundo de baús – confesso a bênção da descoberta pessoal de minha condição humana. Foi com Guto, a partir dele. E graças, confesso-o, a um dom divino da sensibilidade de sentir, de enxergar, de ver, de perceber. Recebi o dom. Guto foi o instrumento que o acionou. Pois, nele – meu amiguinho gordo, lento, pesado, ofegante, sempre cansado – vi, percebi, senti, entendi, recebi a pureza de alma, a limpeza de coração. Guto foi um ser humano absolutamente bom. E a bondade dele me fortaleceu a confiança da humanidade, desde a nossa mais tenra infância.

Desde que me lembro de mim, já na criancice primeira, vejo-me feito de conflitos, de angústias e ansiedades. Tenho-os, sempre os tive, no coração, na alma, no espírito, na carne. É como se, sem a realização de inquietações tantas, eu não me realizasse. Guto, no entanto, era o ser humano realizado, completo, pleno. Ele se bastava a si mesmo. E, por isso, Guto se dava de si, de sua alma, de sua vida para os amigos, para a vida. Ele não tinha tristezas. E nunca falou de angústias ou de depressões. Sem jamais dizer-se ou supor-se especial – parceiro da vida, sócio do mundo – Guto repartiu, comigo, suas visões franciscanas de viver. Mais do que repartir, ele as distribuiu, esbanjando-as.

Nesse meu tempo de vida, de tantas reflexões e remexidas em baús da alma, parece-me que tudo se me fica cada vez mais claro, límpido, o entendimento das coisas. A bondade de Guto, meu primeiro grande amigo, inesquecível, foi o que me preparou para a vida, a confiança no ser humano, a crença na humanidade, a certeza de que a bondade dos homens é que poderá salvar-nos uns aos outros. Preciso, antes que as coisas se acabem, dar um abraço paternal no Dácio Campos, filho de Guto. Sei que, nos olhos dele, está registrada a bondade do pai.

De mim e de Guto, diziam-nos os parentes e amigos: são como D. Quixote e Sancho Pança. Éramos, sim. E, como se sabe, Sancho Pança foi quem conteve os delírios e as alucinações de Quixote, o da triste figura. Guto foi-me a voz permanente de cautela, de serenidade que, em meus delírios de criança enfrentando moinhos de vento, me trazia os pés para o chão. Conheci a verdadeira amizade fraterna. Logo, tive um tesouro. Que me norteou, nas trilhas e caminhos da vida, para a lealdade e o conviver solidário. Saudade, vazio de alma…

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