Contando o primeiro caso
Viver vive-se vivendo (27)
Quando o crepúsculo chega, as últimas luzes, os últimos cantos de pássaros como que obrigam a reflexões ainda mais profundas. Por quê se ama uma cidade com ardor ainda maior do que à mulher querida? Não sei explicar, acho que não conseguirei nem mesmo quando, agora, a noite cai. Fico, no entanto, agoniado diante de passividades outras, percebendo um povo que corre sem saber para onde, que não olha para os lados, que não vê e não sente tudo o que esta cidade inspira. Ou seriam os tempos que atropelam? Creio que não, pois entendi ser, o tempo, imóvel: os viventes é que passamos por ele.
Vendo a noite cair, rendo graças por ter cumprido não sei, ainda, se um destino, se um desejo mais forte do que a razão: ser escritor, mas em e de Piracicaba. Ser escritor caipiracicabano, vendo o mundo a partir de minha terra, vivendo os tempos de uma forma universal, mas no útero de minha aldeia. Quando, cansado, quase desisti, tentando ir-me, fiquei estéril na criação, confirmando os versos doídos de Newton de Mello: “…a grande dor que sente o filho ausente a suspirar por ti.” Nada consegui escrever longe de Piracicaba. Faltaram-me o cheiro do rio, o perfume das noites, brisas que sei de onde sopram. Desistindo de ir, entendi que meu destino era ficar, doce cativeiro ao qual me rendi.
Comecei, na adolescência e na juventude, a descobrir e a entender mistérios de minha terra. Ora, ainda neste 2007, há quem me pergunte o porquê de minha amizade com Mauro Pereira Vianna, professor, economista, advogado, jornalista, criador de cursos, primeiro colunista social de Piracicaba, quando revolucionou os costumes da cidade com o pseudônimo de Marco Aurélio. Por quê, perguntam, se há uma grande diferença de idade, se há mundos sociais tão diferentes?
A explicação é mais simples do que parece, mas mais amorosa do que se pode supor: Mauro Vianna representa o palco onde, pela primeira vez, minha timidez se desnudou. Foi há mais de 50 anos. E quem conseguir imaginar a inquietação de um garoto tímido oculto no brilho de estrelas irá entender. Pois foi o que me aconteceu desde muito cedo na vida. Rapazola e tímido, estive entre fulgores de constelações: João Chiarini, Thales de Andrade, Losso Netto, Sebastião Ferraz, Leandro Guerrini, Jacob Diehl Netto, Júlio Bruhns, Júlio Diehl, Benedito de Andrade, Padre Eduardo Affonso, Benedicto Antônio Cotrim e – meu Deus, quantos e quantos outros? – Mauro Vianna.
Foi em 1955 e eu tinha apenas 15 anos. As férias escolares, eu as passava em Bauru, na humilde e pobrezinha casa de meus tios Alfredo e Rita, na colônia dos ferroviários da Paulista. Ainda hoje, sinto o cheiro de fumaça de trem, de erva cidreira plantada num pedaço de terra, de pedaços de mortadela em molho de tomate, cheiro e gosto de pobreza digna e honesta. Na casa de meus tios, o grande aparelho de rádio era o centro de tudo, como que a lareira diante da qual a família se aquecia. Era assim em todo o Brasil, onde a novela radiofônica, “O Direito de Nascer”, aprisionava as famílias em realidades virtuais talvez mais poderosas do que as do século 21. Mas, em Bauru, àquela época, o que imantava a cidade era um programa feito de suspense, de terror, de tensões: “Conte Seu Caso”. E o produtor, diretor e criador dele chamava-se Mauro Pereira Vianna.
Quase nunca contei, mas, em 1955, eu já tinha rabiscado o meu primeiro livro de ficção, o romance de meus 15 anos: “Uma luz, por favor…” Devo ter os originais guardados em algum canto dos baús. Meus primos partilhavam daqueles sonhos e desejos literários. E, então, estimularam-me a escrever algo para o programa do Mauro Vianna, para eu “contar meu caso”. Confesso não mais me lembrar se algum de meus escritos já tinha sido publicado na imprensa, não sei, pois escrevo “de cor”, do coração. Mas sei que, naqueles dias, inventei uma história de terror – que garanti ter ocorrido em Piracicaba – e meus primos a endereçaram ao Mauro Vianna. Era o caso da alma de jovem noiva – morta de amor – que, em noites de frio, aparecia em prantos, em busca de seu amor, nos muros do cemitério de Piracicaba.
E Mauro Vianna, sem saber tratar-se de uma composição de um menino de 15 anos, radiofonizou o “caso” e causou um alvoroço em Bauru. Foi ele, pois, o produtor de meu primeiro trabalho literário, o palco onde o menino tímido apareceu pela primeira vez. Em 1958, Mauro Vianna mudou-se para Piracicaba. Encontrei-o no “Diário de Piracicaba”, onde eu já era redator. Os “anos dourados” já se tinham cristalizado, Mauro Vianna era a grande estrela do jornalismo piracicabano e eu, nos meus fogosos 18 anos, às portas da vida universitária, estava mergulhado na aventura da “juventude comunista”, levado por João Chiarini e sob as bênçãos de Luiz Carlos Prestes, de quem guardo, com emoção, uma foto de quando ele foi o “Cavaleiro da Esperança”, uma esperança de mundo novo que não me recordo mais qual tenha sido.
Em tempos, como esse início de século, em que sequer a palavras amizade parece ter algum significado, como explicar esses laços afetivos que ainda me unem a Mauro Pereira Vianna?
Lindo, Cecílio, adorei saber da sua hinstória com o prof. Mauro Vianna , quando você escreveu o seu primeiro romance, em Bauru, ainda na adolescência. Apenas hoje pude ler e imprimir estes comentários para os arquivos de Mauro Vianna.
Att.
Nira Gobbo – secretária do prof. Mauro Vianna