Reflexões no meu outono (VI)

Tempo de Violencia - Pulp FictionA propósito da violência que me alcançou através de moços drogados, fui impedido, por ordem médica, de me exceder mais do que já havia me alcançado. Ou seja: de manter as atividades corriqueiras e a principal minha, a de escrever. Eu saíra, alguns dias antes, de um cateterismo e, no próprio dia do assalto em minha casa, aconteceria o meu retorno ao médico para conferir resultados. Sei, hoje, que fui salvo daquela agressão pelo uso do marca-passo. Pois, mais do que a violência física, o que machuca é alma, a sensação de impotência, de uma profanação ao sagrado da pessoa humana, que é a sua dignidade moral.

Houve, para mim, uma ironia que me pareceu, a princípio, cruel. Mas que, em seguida, entendi como um testemunho de que, enfim, chegamos ao tempo da decadência que é o das banalidades. Continuamos vivendo a tragédia de não aprendermos com a história, com o passado. A injustiçada Hanna Arendt – jogada ao limbo por não ceder à vontade voluptuosa de poder – já nos advertira, quando do julgamento do carrasco nazista Eichmann, sobre a banalidade do mal. Seu libelo não foi entendido ou, se o foi, acabou sendo negligenciado, nessa maldição que nos acompanha de, por não aprender com a história, sermos punidos por ela.

A ironia, para mim, foi – vendo dois jovens drogados amarrando-me, jogando-me no chão, com facas em minha garganta – entender, naquelas horas, a banalidade da própria vida, ao fracassarmos como comunidade, como civilização e como humanidade. Ora, a maior parte de minha vida, vivi-a lutando contra corruptos, contra a ditadura, a tirania, a truculência sem motivo. Fui preso, sobrevivi a interrogatórios de sofisticada tortura psicológica, no Dops e Deops, no antigo G-Can de Campinas. Prefeitos, autoridades, políticos tentaram me calar, destruir-me e não conseguiram. Minha vida pessoal e familiar foi, sim, abalada. Mas havia uma causa que compensava a luta. Correr riscos por uma causa nobre era saber das possibilidades de vida e de morte. Sobrevivi, insisto, mesmo sabendo que bandidos de gravata continuam soltos e impunes. Mas – vejam bem – ser morto por dois garotos drogados, sem causa nenhuma, sem motivo algum, a não ser a busca deles, de algum dinheiro para comprar drogas. “Nóis mata e nóis morre para ter um bagulho (droga)” – diziam, com as facas em meu pescoço,s pés e mãos amarrados na sagrada privacidade do quarto.

Faço esse preâmbulo, reforçando-o, por estar retornando a velhas análises, agora renovadas em outro contexto, que irão permitir-me lançar a culpa dessa tragédia social sobre todos nós, cada um com sua maior ou menor parcela de responsabilidade. Nos 1960, nos 1970, começou essa nossa lassidão social. O medo, acompanhado da covardia, paralisou lideranças e silenciou consciências. O jurista Pedro Aleixo – e vice-presidente do primeiro momento do regime militar – advertiu o país: “O perigo da ditadura está no guarda da esquina.”

Ele estava absolutamente certo. Foram os “guardas da esquina” – policiais civis e militares, prefeitos, vereadores, governadores, juízes, promotores, clubes de serviço – que se tornaram cúmplices do terror. Alguns, mais realistas do que o rei. Em Piracicaba, um prefeito tomado do fervor do ódio, foi propor, à Justiça, construir uma cela especial para nela eu ficar detido, pois, por falta de tal dispositivo, eu fora mandado à prisão domiciliar.

Naqueles anos, amigos generosos me perguntavam: “Por que você, se os bandidos poderosos estão soltos?” Confesso e admito que, em momentos de desânimo e prostração, eu também me perguntava: “Por que eu, se os bandidos estão soltos?” Eram dores de um homem mais jovem. Foi-me uma profunda e sólida lição de vida, lição da fatuidade, da finitude, da justiça como ideal e não como realidade. Agora, amigos também generosos, diante da violência gratuita e estúpida – e posteriores enfermidades – me perguntaram se eu não me indaguei, desolado: “Por que eu? Por que comigo?”

Não, não me perguntei. Acontecera, em mim e comigo, o que está acontecendo com todos, o que minhas lutas advertiram inutilmente, o que me transformou em verdadeiro otário – diante da visão materialista dos poderosos – ao prever a que ponto chegaríamos. Milhares e milhares estão sendo agredidos, violados, roubados, atemorizados, aterrorizados diante da violência gratuita, diante da impunidade vergonhosa, diante de políticas também municipais interesseiras, grupais e não coletivas. A esses meus amigos, respondi e respondo: “E por que não aconteceria comigo? E por que não comigo?” Acontecerá,também, com prefeitos, vereadores, juízes, promotores, delegados – que, afinal de contas – com ou sem cargos, com ou sem títulos – são frágeis como qualquer um do povo.

Manterei essas reflexões como missão. Pois ser jornalista é ter missão. E me sinto ainda mais fortalecido agora que me informaram: o Estado brasileiro reconheceu-me como perseguido político, vítima das injustiças e irá desculpar-se comigo. Isso, para mim, tem apenas um significado, valioso: a luta foi honrada e legítima. E valeu a pena.

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