Reflexões no meu outono (XII)

Lixo urbanoO mundo gira e eu giro com ele. E, quanto mais giro, mais vou passando pelo tempo. Que, para mim, é imóvel. Logo, não é o tempo que passa, mas nós que passamos por ele. Sei lá se isso é verdadeiro, mas me assossega. Pois – girando, girando, girando – sinto que lá me vou, eu, fazendo a caminhada. E é nela que se aprende alguma coisa.

No entanto, não sou tolo a ponto de me esquecer da finitude humana. Sei, pois, que já me esgoto no tempo caminhado, podendo ver a proximidade de meus horizontes. Isso não me perturba, pelo menos enquanto o pensamento estiver lúcido e forte a vontade moral. Quando, também, se esgotarem, saberei do final do percurso. Que tem sido longo, mas generoso e fascinante. Poder ter acompanhado tantas transformações e ter sobrevivido a todas elas, este é um privilégio ao qual rendo graças todos os dias. Inspiro-me em Proust que – quando cansado e perto do fim – recebeu o conselho de um amigo sábio: “Trabalhe enquanto tem luz.” Quero acreditar seja luz espiritual.

Ora, se ainda me espanto e me indigno, devo crer que ainda me sobram crenças e esperanças, algo em que acreditar, princípios que não morreram e valores que ainda permanecem. Aceitar e admitir, diante do caos, que “o mundo é assim” ou que “os tempos são outros” – isso me é inadmissível. É óbvio haja mudanças, ainda que nem todas sejam para melhorar a vida humana. Ora, não há sociedade humana que sobreviva se não houver a transmissão, de uma para outra geração, das técnicas culturais que permitem a vida em comum, em nível pacífico e civilizado. À transmissão dessas culturas é que se dá o nome de educação.

Sociedades realmente civiliizadas aparelham-se para enfrentar as inevitáveis mudanças ou novas situações, tornando-se, assim, flexíveis para correções e modificações. Isso não significa abrir mão de tesouros culturais acumulados, mas, sim, assimilar novos conhecimentos e técnicas ao patrimônio já disponível. Sociedades fundamentalistas e primitivas é que professam a imutabilidade das técnicas, tornando-as como que sagradas. A educação, nas culturas civilizadas, tem a responsabilidade de transmitir as culturas e de corrigi-las e aperfeiçoá-las. Mas não é isso que temos presenciado. A educação faliu. E, com ela, tem sido inevitável a falência da civilização ocidental.

Ora, não é verdade que tudo é permitido, que tudo é válido, que tudo é possível. A civilização tem regras e, por isso, as sociedades democráticas são regidas pela lei. Se a lei é desmoralizada, se não tem eficácia, se não produz efeito, caímos, novamente, na barbárie e no primitivismo. Não será isso que já estamos presenciando em nosso cotidiano, nas ruas, nas praças, na coexistência social que deixou de ser pacífica para se tornar truculenta? Se não há mais princípios pétreos, se tudo pode ser trocado, quais os referenciais?

Vejo mundo a partir de Piracicaba. E vejo Piracicaba a partir do mundo. Recuso-me a acreditar que estamos diante de algum progresso, pois este é um movimento, insisto, que busca um fim ético. Piracicaba está perdendo seus referenciais e, assim, perde a solidez em que culturalmente se apoiou e a espiritualidade que moveu nossos ancestrais. O que se chama de desenvolvimento tem sido, na verdade, uma devastação, crescimento desordenado, sem ética, sem finalidade moral, sem princípios e valores norteadores a não ser os da ambição, do lucro e do individualismo. Isso está mais para a barbárie do que para a civilização, mais para a guerra do que para a paz.

Fomos considerada a cidade mais exemplar do país, um modelo de desenvolvimento harmônico e de cultura. A educação – que Piracicaba transmitiu e que foi imitada inclusive em nível nacional – era a grande meta de uma terra que primou por sua civilidade. Um exemplo? Quando Prudente de Moraes – antes de chegar à Presidência – foi Governador de São Paulo, já em plena república, foi em Piracicaba que ele se inspirou para impor a educação do governo paulista. Era o modelo de Martha Watts, que seu secretário da educação, Caetano de Campos, veio buscar. Outro? Júlio de Mesquita – o jornalista símbolo do Estadão – indicou Piracicaba como modelo de administração pública, no governo de Paulo de Moraes Barros.

Hoje, quando se vêem pessoas jogando lixo nas ruas, atirando latinhas de bebidas pelas janelas dos veículos, o descuido na coleta do lixo, não há como não se magoar com a incivilidade e o retrocesso. O recomeço está nas coisas mais simples, no respeito que lhes é devido. “Não pisar na grama”, eis um pequeno mas fundamental exemplo. Sehá a regra, tem que ser obedecida. E como acreditar haja inscrições em terrenos e espaços públicos com a informação “É proibido jogar lixo”? Seria preciso, a um povo civilizado, fazer essa imposição?

Quando se perde a noção do absoluto e do sagrado, tudo se banaliza e a selvageria se impõe. Valorizar, pois, o medíocre, a bandidagem, o individualismo e aventureiros é destruir o aparelho cultural de um povo. Destruído, de que adiantará qualquer esforço? O conforto está lá, outra vez, nos livros santos a que chamo de sábios:“Não deis aos cães as coisas santas e nem deitei aos porcos as vossas pérolas.

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