Um Reino Encantado na Rua Benjamim

“Sambalelê está doente…

Com a cabeça quebrada

Sambalelê precisava

É de umas boas palmadas…”

Vozes de crianças girando em roda nas calçadas. E a corda a girar estendida em plena rua nas mãos das meninas, uma em cada calçada, enquanto as demais pulam felizes no meio da rua quase deserta: sal, pimenta, fogo…

Balança caixão, balança você,

De um tapa nas costas e vá se esconder…”

Década de 50! Piracicaba calma e pacífica em meio ao verde da cana de açúcar a se perder de vista. Um leve odor de restilo a impregnar o ar… Bonde da Paulista unindo bairro ao centro. Bonde da Agronomia, cheio nos dias de semana com estudantes e trabalhadores e nos domingos mais vazio, conduzindo famílias a passeios sob as sombras das velhas árvores da ESALQ.

Um quarteirão em especial a ser destacado. O da Rua Benjamim Constant, cravado entre as Ruas São Francisco e Joaquim André, com suas casas residenciais e algumas poucas de comércio. Nele, uma casa amarela e de número 2094 com sua trepadeira de glicínias que protegia do sol as cadeiras de lona de abrir e fechar e a gostosa rede onde se podia deixar ficar em leituras de livros permitidos ou daqueles que se lia às escondidas da severa censora da casa. A casa da Célia e Celina, amigas das brincadeiras de todas as tardes na calçada e que ficava em frente à casa amarela. Na esquina, o sobrado novo onde, no andar de cima, moravam Cidinha, Edelzia e Bernardete, também parceiras nos brinquedos diários e no piso de baixo, o armazém, moderno para a época, dos Angeli, onde íamos às compras que eram registradas em caderneta para pagamento no final do mês. Mais além, dois quarteirões à frente, bem debaixo do pontilhão da paulista, o bar da família Naime, onde Odete e Leninha também faziam parte das brincadeiras que marcavam os finais de tarde na calçada.

“Passa, passa bom barqueiro, dom, dom, dom,

Dá licença de eu passar

Que tenho mulher e filhos

Que não posso sustentar, dom, dom, dom…”

Do lado oposto, na esquina, o armazém que nós crianças chamávamos de “Casa Ne”, onde comprávamos balas. No terreno dos fundos dele havia um jambeiro que na época certa ficava carregado de frutas de casca amarelo ouro com um sabor adocicado e levemente perfumado que faziam nossa delícia.

Lembranças de menina da casa, do quarteirão e da cidade onde se formaram seus primeiros afetos e sonhos, nascidos todos eles, na proteção de uma infância onde o tempo era quase todo passado a brincar, cantar e dedicado aos estudos no colégio das freiras. Aos domingos, subir a Rua São Francisco rumo à Igreja dos Frades para a missa das dez horas, aprumadas no vestido novo e de passo rápido que era para não chegar atrasadas.

Uma pequena parada na Padaria Jacareí para comer do famoso pudim de queijo, para depois entrar na igreja ao som de Bach tocado naquele órgão antigo e maravilhoso de que me lembro tanto. A música “Jesus, Alegria dos Homens” assinalava o início da missa que procurávamos acompanhar concentradas nas orações que, de tanto repetir, já sabíamos de cor. O sermão, às vezes cansativo e longo demais era seguido pela hora da Comunhão e o medo danado que despertava em mim de que a hóstia consagrada saísse voando para longe no momento do padre a colocar em meus lábios. As freiras contavam casos de que isso acontecia quando não se estava preparado para receber o santo sacramento.

Na saída, após a frase intensamente esperada “finis missa est”, a que respondíamos felizes “Deo gratias”, deixávamos a igreja e dobrando a esquina passávamos pelo “Lar e Escola Coração de Maria” onde todas nos persignávamos, pois que se convencionara entre nós, e eu nunca soube a procedência dessa norma, de que não podíamos falar “palavrão” e nem brigar na quadra inteira por ser ela sagrada em virtude de um enorme quadro do Sagrado Coração de Maria ali exposto dia e noite e sempre visível pelo vidro da janela ao alto do casarão.

De volta ao quarteirão da casa amarela com a fantasia a nos transformar em fadas e bruxas, reis e rainhas nesse reino encantado criado por nós, uma nova cantiga de roda se faz ouvir baixinho e é agora levada para longe pela brisa suave da saudade.

Rei, capitão, soldado, ladrão

Quem irá levar a minha mão?”…

 

Delza Maria Frare Chamma/Campinas, 24/01/2010

 

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