História que eu não gostaria de contar (2)

GOLPEA paróquia em transe

Para se tentar compreender o posicionamento e a reação de Piracicaba diante do golpe militar de 1964 – o que, ainda, me parece um desafio a qualquer analista – há que se buscar, primeiro, entender a colcha de retalhos político-partidária na cidade. A administração de Luciano Guidotti (1956/1959) fora extraordinária, tida como verdadeira revolução urbanística. Luciano – sem saber relacionar-se com o eleitorado – tornara-se, assim mesmo e na verdade, como que um ídolo político, quase intocável. E sua personalidade forte acirrou-se, revelando um individualismo que, ao final de seu governo, o manteve afastado das demais lideranças locais. Amado pelo povo, foi, aos poucos, sendo isolado por antigos companheiros e aliados.

O motivo principal foi a sua sucessão. Pois Luciano, sem consultar partidos ou companheiros, impôs a candidatura do então vereador Domingos José Aldrovandi, um truculento líder canavieiro, que enfrentaria outra grande dificuldade: era um atuante metodista, num tempo em que o catolicismo era predominante, sob as ordens monárquicas do primeiro bispo católico de Piracicaba, o ultraconservador e também autoritário, D.Ernesto de Paula. E num tempo de preconceitos religiosos tidos como insuperáveis.

A indicação de Luciano provocou reações intensas. Aldrovandi, além de outras dificuldades, tinha uma personalidade forte, agressiva, também autoritária. Com o veto da Igreja, a situação ficou insustentável, especialmente porque os dois jornais da cidade – Diário e Jornal de Piracicaba – também se aliaram contra aquela candidatura. E, para piorar a situação de Luciano Guidotti, a UDN – porta voz dos conservadores – indicou o vereador Salgot Castillon como candidato. Eram, novamente, a contradição e o paradoxo. Salgot, apesar de “udenista”, mantinha a sua vocação populista e era amado pelo operariado e pelos sindicatos.

Piracicaba radicalizou-se politicamente de tal forma que, décadas depois, ódios e rancores permaneceram vivos. Salgot Castillon impôs-se, venceu as eleições, tornou-se prefeito e surgiu o “salgosismo”, o fenômeno excêntrico de uma “UDN populista” cujas conseqüências surtiriam estranhos resultados depois. E não me é possível – num rápido testemunho – narrar a confusão, para não dizer bagunça, que se criou politicamente em Piracicaba. Que piorou e aumentou quando Salgot renunciou à Prefeitura, candidatando-se a deputado estadual e vencendo. Em 1962, Luciano Guidotti ficava isolado, também por Domingos Aldrovandi ter sido eleito deputado, com votos do “ademarismo”.

A renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, alimentou ainda mais as rivalidades locais. O “Jornal de Piracicaba”, através da pena brilhante de Losso Neto, fazia a apologia de Jânio Quadros, quase que endeusando-o. E sofreu violento baque com a renúncia do presidente. Foi quando o quadro político nacional se alterou. Adhemar de Barros voltaria, eleito pelo povo, ao governo de São Paulo. E Piracicaba tornou-se um barril de pólvora, sem respeitos partidários mas com verdadeiras paixões personalizadas. Havia o “guidotismo”, resquícios do “gonzaguismo”, surgira o “salgosismo”, além da tradicional guerra entre “ademaristas” e “janistas”, agora chamadas de “vúvas de Jânio”. Estas, inconformadas, aguardavam o retorno do renunciante.

A paróquia entrou em transe.

Véspera do golpe militar

As lideranças políticas de Piracicaba – tanto à época, como agora, em meu entendimento – pouco tiveram, com raras exceções, a ver com ideologia política ou com visão em dimensão nacional. O palco era essencialmente municipal, com atores e autores de mentalidade paroquial. Buscava-se o comando da cidade, quase nada importando a política estadual e nacional, a não ser quando ou se influenciasse a municipal. Não me é, pois, temerário afirmar que, acima de tudo, prevalecia o interesse de grupos em conflito.

Sendo reeleito prefeito em 1963, Luciano Guidotti reassumiu a sua liderança truculenta mas obreira. Em 1961 – e, neste ano, permito-me dizer ter acontecido o meu contato mais íntimo com toda essa realidade – Luciano reuniu um grupo dos principais empresários de Piracicaba para criar um novo jornal na cidade. Ele guardava mágoas do Diário e do Jornal, que lhe haviam negado apoio anteriormente. Com exceção dos grupos Dedini e Morganti – que eram proprietários do Diário de Piracicaba – os principais industriais piracicabanos se uniram a Luciano para a nova empreitada: D´Abronzo, Romano, Vargas, Silvino Ometto, Domingos Aldrovandi e outros. Nascia, assim, a “Folha de Piracicaba”, para a qual fui convidado, deixando o Diário, por força de minhas relações familiares com a família Guidotti. O Jornal de Piracicaba era o centro difusor das idéias da UDN, do Rotary, da ESALQ e dos conservadores de Piracicaba. E, abertamente, apoiava o udenista-populista Francisco Salgot Castillon. O Diário de Piracicaba, sob a direção de Sebastião Ferraz, obedecia à orientação dos Dedini, Ometto e Morganti. E alinhava-se sutilmente ao então PSD de JK.

A bagunça aumentou. A esperteza política de Luciano Guidotti se revelou ainda mais acentuadamente. Ele continuou dizendo-se “apolítico” e “apartidário”, mas manobrava com grande habilidade. Sua simpatia pelo ex-governador Carvalho Pinto era declarada, um ex-egresso da UDN e novo líder do PDC (Partido Democrata Cristão). Mas articulou para que seus dois irmãos, Luiz e João Guidotti – com Luiz, Luciano criava atritos sem fim – se aliassem a lideranças estaduais: Luiz Guidotti tornou-se, juntamente com Domingos Aldrovandi, líder inconteste do “ademarismo” em Piracicaba, assumindo todos os defeitos do estilo do velho Adhemar. E João Guidotti, outro irmão, unia-se quase que umbilicalmente ao vice-governador Laudo Natel, também pela amizade que tinham através do esporte. Salgot Castillon mantinha vivo o seu “udenismo-populista”, namorando, ao mesmo tempo, os conservadores e o operariado. E João Pacheco Chaves, com Lino Morganti, eram generais sem exército na defesa de Juscelino.

Está confuso para o eventual leitor? Não haja novidade nisso, pois esteve e permaneceu confuso para toda uma cidade. Criaram-se trincheiras como se fosse realmente uma guerra cruenta. E, 50 anos depois, espanto-me ao me recordar que, em meio a essa balbúrdia, eu, um jornalista de apenas 22 anos, me tornara diretor e, logo em seguida, proprietário da “Folha de Piracicaba”. Essa é outra história confusa, mas não interessa aos objetivos desta narrativa, a não ser como participação nos acontecimentos. Recém-saído do Partido Comunista Brasileiro, eu me vira no jornal dos maiores capitalistas de Piracicaba. Essa é a razão por, logo ao início deste depoimento, ter citado minha primeira mulher e mãe de meus filhos, Mariana. A irmã dela, Odila, era casada com Wilson, filho de Luciano Guidotti. E eu me via em palpos de aranha – como se dizia antes – para equilibrar convicções ideológicas e familiares.

Peço autorização para abrir um parêntese para tentar explicar minhas dificuldades, no auge da juventude. Mesmo tendo me afastado do PCB – militância na juventude comunista – eu mantinha algumas convicções socialistas. E precisara – por circunstâncias dramáticas – assumir a direção de redação da “Folha de Piracicaba”, com o afastamento de seu primeiro diretor, Waldemar Arruda. Para aumentar-me a perplexidade, um dos padrinhos de casamento da Mariana era o próprio Luciano Guidotti. Àquelas alturas, ele e Domingos Aldrovandi – que era presidente da “Folha” – estavam rompidos. E, ao saber que Luciano seria um dos nossos padrinhos no casamento, Aldrovandi se magoou e praticamente se ofereceu para também ser o meu. Ele se tornara meu amigo, muito mais velho do que eu e confesso ter gostado muito dele. Mas ser meu padrinho de casamento, ao lado de Luciano Guidotti? E aconteceu. E criar-me-ia outras dificuldades mais além, quando aconteceu o golpe militar. Fecho parêntese.

Em 1962 e 1963, Piracicaba era uma cidade em perigosa ebulição política. A exemplo do que ocorria em todo o país, greves e mais greves aconteciam. E eram, na verdade, articulações políticas, inspiradas pela antiga CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), um dos braços mais fortes da confusa presidência de João Goulart. E as contradições piracicabanas continuavam: os sindicatos locais não se entusiasmavam com os apelos do presidente, faziam greves de seus próprios interesses e – eis o grande absurdo! – eram dóceis ao comando político do líder da UDN, Francisco Salgot Castillon. Na greve contra as indústrias Dedini e na dos ferroviários, Salgot teve liderança plena, chegando a deitar-se nos trilhos da Sorocabana para impedir a passagem do trem. Também na “Folha de Piracicaba” não concordávamos com a baderna das greves e do governo de João Goulart, apesar de já se saber que os Estados Unidos mantinham a oposição para derrubá-lo. Nossa grande expectativa – naquele jornal e de grande número de brasileiros – era o retorno de Juscelino Kubitschek à presidência da República, o “JK-65”.

A aversão a Getúlio Vargas continuou, em Piracicaba, na figura do seu pupilo predileto, presidente João Goulart. Havia excelentes propostas governamentais de Jango, condensadas nas fascinantes “Reformas de Base”. Mas não se sabia se eram verdadeiras ou apenas demagógicas. Faltavam-lhe liderança, comando e carisma. A esperança da “esquerda” de então estava no retorno de JK. Mas Piracicaba, por sua maioria, entusiasmava-se com as possíveis candidaturas de Adhemar de Barros, de Carvalho Pinto e de Carlos Lacerda. À distância, esses nomes serviam de bandeira para a política municipal. O conservadorismo era óbvio, até mesmo das esquerdas que eram muito mais de poucos intelectuais do que operárias. Nelas, despontavam o intelectual João Chiarini, o professor Soubihe Sobrinho, da ESALQ, Antônio Farah que, também paradoxalmente, era presidente da Cipatel, empresa telefônica mantida pelos grandes empresários.

Agora, 50 anos depois, vejo-me entre perplexo e ensimesmado ao constatar que o grande sonho daqueles anos não passou de uma colcha de retalhos onde ideologias e disputas apenas municipais se misturavam em paradoxos quase cômicos. O maior e mais competente ideólogo do socialismo, Antônio Farah, se tornara presidente da poderosa companhia telefônica dos capitalistas de Piracicaba, um empreendimento, aliás, pioneiro. João Chiarini – o mais famoso e convicto de todos os comunistas – era homem de confiança, chefe de cerimonial e secretário particular de um dos maiores industriais do país, Mário Dedini. E o jovem jornalista egresso do comunismo estava dirigindo um jornal criado pelos mais poderosos empresários da cidade…

Ficamos, então, às vésperas do golpe militar, com o seguinte quadro: “janistas”, “carvalhistas”, “adhemaristas”, “lacerdistas”, “juscelinistas”. E as lideranças locais se posicionavam passionalmente: Luiz Guidotti e Domingos Aldrovandi, com Adhemar de Barros; João Guidotti, na expectativa da decisão de Laudo Natel; Salgot Castillon, com Carlos Lacerda (inimigo mortal dos sindicatos operários); Luciano Guidotti simpático a Carvalho Pinto. Juscelino Kubitschek não tinha grandes lideranças locais a seu favor. Os mais influentes aliados eram o deputado João Pacheco e Chaves e o empresário Lino Morganti, a quem JK convidara, se eleito, para ser seu Ministro da Agricultura. Era – como se dizia antes – um verdadeiro “Samba do crioulo doido”, canção do jornalista Sérgio Porto, o insuperável “Stanislaw Ponte Preta”.

O jornalismo impresso, por sua vez, já se posicionava diante daquela confusão: o Diário e o Jornal permaneceram conservadores, apoiando movimentos de oposição a João Goulart. E a Folha de Piracicaba – com o meu comando quase juvenil – acolheu toda uma juventude entusiasmada com mudanças, com reformas, com novos sonhos. A Folha se tornou, de repente, um centro de encontros estudantis, operários e de intelectuais. Na realidade, não sabíamos o que buscávamos. Mas sabíamos o que não queríamos: a esclerosada situação política, nacional e municipal. Um grupo de sonhadores, nada mais do que isso. E, hoje, admito com clareza, termos sido jovens que ignoravam a verdadeira realidade oculta naquela confusão: o golpe militar, o apoio dos Estados Unidos, inicialmente configurado na criação do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que financiava políticos, e na agência informativa USIS, fornecedora de matérias especiais gratuitas aos jornais.

(CONTINUA)

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