Dor e medo
De quando em quando, penso em Júnior, o menino grande que morreu vitimado por um tiro. Tinha sido, desde pequeno, meu vizinho numa rua que era o limite urbano, pois sítios e chácaras vinham logo em seguida. Um querido amigo. Vi-o entrar na adolescência, sair dela. Mas permanecendo menino mesmo quando se tornou homem. Resolveu montar um trailler de sanduíches e lhe emprestou, como nome, seu apelido: Brucutu. Ele era o próprio: rude na aparência; alma e cérebro de criança. “Sai um sanduíche de linguiça bem passada. Com cebola.” – ele gritava, mal me via descer do caro.
Mataram-no a tiros, mais um jovem sacrificado em tempos e espaços tornados campos de batalha. Ainda não me conformo com tanta violência. Mas o estranho, para mim, é essa minha estranheza diante da morte de moços. Mas nisso está a resposta: a dor, sinto-a pela perda de alguém próximo. Pois crimes, tiros, mortes violentas, misérias, guerras, bombardeios, sangue, agressões, desrespeitos, desprezos infinitos pela vida – isso são cenários de nosso cotidiano. Em cores e ao vivo.
Os mortos em Bagdá, no Afeganistão, porém, são estranhos. Os tiros e bombas autorizados pelos EUA – matando crianças, mulheres, bebês, idosos – esses não mais nos comovem. Nem a matança diária entre judeus e árabes no Oriente Médio. Nem genocídios na África. São capítulos do espetáculo de cada noite, de milhões de pessoas idiotizadas diante do televisor, mal diferenciando o real do virtual, a ficção da vida. Ora, se permitimos sangue e horrores em nossas salas, por que estranhá-los em nosso cotidiano? Se estão na tevê, por que não nas ruas, nas esquinas? O que é real, o que é virtual?
Um parente – idoso e minado pelo mal de Alzheimer – despertou-me, há alguns anos, para algo cuja dimensão, confesso, eu não avaliara: o medo da televisão. Assim que ouvia o som dos telejornais, o ancião entrava em pânico, descontrolando-se de desespero. Ele fugia, querendo esconder-se, gritando para a família refugiar-se: “Eles estão chegando, cuidado!” E apontava, de longe, a tela da televisão. “Eles”, para o homem, eram os bandidos, assaltantes, soldados, policiais. Ele via a tela e enxergava o mundo. E não sabia para onde ir.
Informaram-me que outros idosos – mesmo saudáveis – temem alguns programas de televisão. Não sabem exatamente o que temem, mas temem. E o medo aumenta, cresce, expande-se. O medo de janelas abertas, de portas frágeis, de sair às ruas, de fazer compras, dos passeios dos filhos, do trânsito, do estranho ao lado. Lembro-me de minha reação irracional, há alguns anos, após um “trombadinha” ter-me pilhado o bolso. Ia-me por uma rua quase deserta do centro de São Paulo quando vi dois garotos vindo em minha direção. Ora, na verdade, apenas estávamos na mesma calçada: eles vinham, eu ia. Em instantes, criei a cena na imaginação: os garotos iriam assaltar-me. Comecei a dar-lhes bofetões, sem que nada me tivessem feito. Em seguida, veio-me a vergonha: os meninos estavam assustados, perplexos. Eles, com medo de mim; eu, com medo deles.
O que tem, isso, a ver com a lembrança da morte do moço meu amigo? Tudo. Pois é essa a dolorosa constatação: apenas quando as vítimas são pessoas queridas, próximas é que o absurdo de nossa realidade nos fere a consciência. Mas são milhares por dia, em todo o país. E milhões, no mundo, levados pelas mais rudes ou mais sutis formas de violência. Ridiculamente, porém, discutimos cidadania, humanismo, religiosidade. Entre desalmados, como falar em alma? Entre robôs, como falar em solidariedade? Bom dia.