A prostituta faminta

Esse texto foi publicado em 14 de setembro de 1979 em O Diário. Foi selecionado para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014.

A paisagem humana de São Paulo continua dolorosamente fantástica. cada ser humano, carregando a própria história, consegue transmitir, por simples olhar, a sua angústia e, quase sempre, a perplexidade. Cada homem que passa é um universo. Cada mulher que anda é a síntese da raça humana. poucas cidades conseguenl ser ao mesmo tempo tão humanas e impiedosas, tão hostis e generosas.

Num balcão de café, pode-se presenciar o retrato da tragédia humana. Presenciei-o. Esquálida, desbotada, magra, uma pobre mulher se debruçou e pediu, ao caixeiro, um almoço. Foi-lhe negada a comida. Nervosa, inquieta, tensa, a desbotada mulher — que tentava esconder a velhice prematura com borrões de pintura pelo rosto — insistiu na súplica. Frio e insensível, o homem apenas lhe disse: “Você não me pagou o jantar de ontem, como quer almoçar hoje?” Ela tentou explicar-se, que chovera, que fora fraco o movimento, que os seus fregueses não a haviam procurado.

No balcão, indiferente, o homem continuou fazendo os seus trocos, como se quem lhe suplicasse não fosse um ser humano, mas apenas pedaços de carne flácida, de ossos salientes, uma máquina. A insistência da súplica: “Eu lhe juro. Hoje, arranjo o dinheiro e, até a noite, pago o jantar e o almoço. As coisas vão melhorar”,

Melhorar… O cafezinho não me descia pela garganta. Eu sentia, com lucidez doída, que a pobre e envelhecida prostituta não era apenas uma pessoa qualquer, mas um semelhante, irmã de raça e de humanidade. Recusava-me a crer tivesse o coração humano chegado a tal ponto de rudeza que um homem negasse a uma mulher faminta, talvez tuberculosa, um mísero prato de comida. Fixei o rosto do homem, à procura de seus olhos. Queria fitá-los, mas fitá-los fundo. Penetrar-lhes, através da córnea e da retina, a própria alma.

O amor é a fonte genetriz do universo e da humanidade. E aquela mulher era tão somente uma profissional do amor, que fazia do sexo não mais o momento sublime dos seres que se amam, mas uma dolorosa e amarga profissão. O que pode haver de mais penoso e humilhante do que vender o próprio corpo para sobreviver? Vendê-lo a quem, na maioria das vezes, causa repugnância e pavor? Incluo-me entre os que repudiam mulheres que deixam lares, maridos e filhos por uma aventura sórdida. Mas o coração dói de ternura diante dessas famélicas e infelizes mulheres que, tendo a mais dolorosa de todas as vidas, são chamadas de “mulheres de vida fácil”. O que é fácil para elas, meu Deus?

E não me digam, os simplistas e insensíveis, que elas deveriam era pegar a enxada. Até a enxada lhes é negada ou, quando lhes é dada, fazem-no com os travos da humilhação e da esmola impiedosa.

No meu livro Bagaços da Cana, contei a história de uma prostituta que tinha mais pureza na alma que muita madame que enlameia o próprio lar. Apenas há prostitutas porque, antes delas, existem os abutres que se alimentam de suas carnes. Como condená-las, sem deixar de condenar o próprio ser humano, com suas misérias e torpezas? O corpo humano é o templo de vida e da divindade. Profanado e aviltado, mesmo assim é o invólucro do que temos de eterno e imperecível.

“Tá bem, sua vadia! Pode comer, mas quero o dinheiro até a noite, se não coloco os tiras atrás de você!. A mulher comeu. Sem mastigar. Com a pressa de quem tem medo de que a concessão lhe fosse roubada. Saí sem sentir o gosto do café. Talvez a dor que sentia na alma. Fiquei com a impressão de o céu estar povoado de “mulheres da vida”. Bom dia.

 

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