Num pangaré e na plateia

Este texto foi publicado em 16 de setembro de 1979 em O Diário. Foi selecionado para o Foi selecionado para o livro “Bom Dia- Crônicas do Autoexílio e da Prisão”, lançado em 2014.

Nunca pensei fossem – um simples gesto de renúncia ou uma atitude de mudança – tão difíceis de ser compreendidos. Não que espere por compreensão. A raça humana está tão perplexa que, não se compreendendo a si, o homem jamais compreenderá o outro.

É-me incrível continuar deparando, a cada passo, com pessoas que ainda não acreditam em minha decisão de abandonar o jornalismo profissional, em ter deixado a direção de O Diário. As explicações — que tinha a dar— já as dei. Se os amigos me consideram louco ou enfermo, o problema, desculpem-me, é deles. Se os inimigos, conjecturam sobre inimagináveis jogadas políticas, o azar, também, é deles.

Tudo se resume numa única coisa: descobri já não estar sendo eu mesmo, mas um outro, com o qual não mais conseguia conviver. Resolvi, então, permitir-me ser, na minha integridade total e plena. Livre. Simplesmente, entendi estar sendo escravo dos outros e de mim mesmo. Dei-me, assim, a minha carta de alforria. E tão difícil de entender que um homem tenha o direito de ir-se em busca de sua própria vocação?

Lembro-me de, um dia, ter-me também assustado quando um amigo abandonou seu curso de engenharia para se tornar funcionário de um posto de gasolina. Pensei estivesse louco. Só compreendi depois, quando vi a sua felicidade. Trabalhar num posto de gasolina era tudo o que ele desejava na vida. Transformou-se num homem feliz, renunciando a ser um homem de sucesso.

Todos querem ser homens de sucesso. E penso que o problema está aí: o sucesso. Todos querem ser homens de sucesso, mesmo que isso lhes custe a própria paz, a própria felicidade. Já repararam como as estrelas brilham solitariamente? Em compensação, os grãos de areia são beijados pelas ondas do mar, batidos pela chuva, aquentados pelo sol. Pequeninos, mas irmanados na sua feliz descontração.

Há pouco tempo, no Rio de Janeiro, conheci o proprietário de um confortável restaurante. Um homem feliz, cordato, alegre e em paz consigo mesmo. Transmitia serenidade, impressionou-me pela cordialidade. Só depois vim a saber que ele era feliz por atuar como “maitre” – tinha sido um grande cirurgião carioca. Renunciou ao sucesso, às colunas sociais, à profissão — para ser dono de restaurante.

Aqui mesmo, em Piracicaba, houve um brilhante cirurgião-dentista que resolveu ingressar no Seminário. Ora, assim também aconteceu comigo. Eu estava morrendo, suicidando-me, numa atividade que me asfixiava. Não compreendia o porquê da minha insatisfação e do meu desconforto. Quando o compreendi, mandei tudo às favas. Tirei as roupas de guerreiro, vesti os trapos de peregrino. Deixei o cavalo fogoso, montei num pangaré. Não há, pois, o que explicar, meus doces amigos que ainda se preocupam comigo. Estou feliz, estou em paz. Nem quero ser um grande vulto da Literatura ou do Jornalismo. Quero, apenas, escrever. Mediocremente, não importa. Mas escrever, contar estórias, o que  me faz sentir vivo.

Não sou dono de mais nada. Em compensação, consegui o mais importante: ser dono da minha própria vida. Não me perguntem, pois, se estou louco, se fiquei enfermo. Nem me ofendam, os inimigos, com suposições esdrúxulas. O parto foi doloroso, mas simples: entendi, acho que a tempo, ser pessoa humana e não máquina. E vou saboreando lentamente as delícias do anonimato no meio da multidão. As luzes da ribalta cegam. As da plateia confortam. É isso. Bom dia.

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