Algo está errado. E grave.

picture (73)Até e já ouço alguém ou alguns perguntando-me em racional forma de censura: “E você, tem quê a ver com isso?” Pois bem. Se alguma desordem da razão me diz o contrário, coração e as vísceras da alma me dizem que tenho, sim, tudo a ver com isso. Pois alguma coisa está errada. Não sei o que é. Mas errada está.

Antes de me referir ao apartamento de Caetano Veloso, na Vieira Souto, retomo meus preâmbulos e parênteses que, pelo visto, se me vão tornando muletas de narrativas. Ou seja: para falar de flor, tenho que me referir à semente. Então, vamos lá.

Primeiro, foi o franguinho no restaurante Brahma, das minhas tantas e imensas recordações. O garçom era o Everaldo. Tornei-me, por um tempo, íntimo deles. Mal me vendo sentar-me à mesinha de sempre, os velhinhos – os do piano, do violino, do bandonéon – tocavam “El dia que me quieras”, eu fungava de emoção. O Everaldo já me trazia chope, caipirinha e providenciava, ao alho e óleo, meu frango a passarinho.

Certa noite, sem apetite, pouco petisquei. Na travessa, ficara praticamente tudo. Com delicadeza, insinuei, ao garçom, levar o prato quase intocado para casa. O moço sensibilizou-se, agradeceu, não aceitou. E explicou-me: funcionários não podiam levar qualquer sobra de alimentos. Eram jogados no lixo.

Doutra feita, fiquei à porta da padaria, aguardando familiares. Distraído, vi o caminhão de lixo aproximar-se, estacionar à saída dos fundos e recolher sacos e fardos que pensei fossem de lixo. Era um exagero e a curiosidade do jornalista me levou a perguntar de que se tratava todo aquele lixo. Mas eram pães que, por não terem sido vendidos, seriam jogados fora. Pães feitos naquele dia.

Em um hotel paradisíaco e então famoso, no Rio de Janeiro, fui convidado, há mais de 20 anos, a participar de grande evento oferecido especialmente a jornalistas. Havia, no hotel, quatro ou cinco restaurantes, todos fartamente disponíveis aos convidados. Até perceber o que acontecia, deliciei-me: vinhos, pães, especiarias. Meu coração, no entanto, percebeu a tal coisa errada, aquela punhalada na alma que parece vir das funduras da Criação. Se se abria um vinho – francês, alemão, italiano – e não se sorvia toda a garrafa, jogava-se fora, ostensivamente, o que sobrara. E o mesmo acontecia com tudo o que sobrasse em cada mesa, incluindo as imensas cestas de pães, de frutas, de doces e guloseimas

Ora, não me digam que nada tenho a ver com isso, que a liberdade da democracia e da economia liberal permitem todos esses sucessos, esplendores e ostentações. Pois eu tenho, sim, todos temos. Há algo absurdamente errado em tudo isso. Se milhões de pessoas morrem de fome, se outros milhões não têm um mínimo condizente com a dignidade humana – esse contraste absurdo é revelador de algo errado. E é perigoso. Pois, sendo contraste, levará, inevitavelmente, ao confronto.

Há alguns meses, a ex-mulher de Caetano Veloso, Paula Lavigne, explicou a razão de ter colocado à venda o apartamento do casal, na rua Vieira Souto, com cinco suítes, vinte metros abertos ao mar: “Somos eu e dois filhos. Ficamos meses e meses sem sequer ir à sala.” Preço: 13 milhões de reais. Que é pouco diante de alguns outros, na mesma área, colocados à venda por 15, 20, 30 milhões de reais. Três desses apartamentos dariam, com toda certeza, para equacionar a falta de ambulatórios no Rio de Janeiro. Se não tem algo errado em tudo isso, é hora de desistirmos. Bom dia.

Algo está, sim, errado. E eu tenho tudo a ver com isso. Bom dia.

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