Ao vencedor, as batatas

picture (43)Meio de tarde, voltei a hesitar: ir, não ir? E por que não desfazer o compromisso? Por que tê-lo marcado? E outras reuniões, outros compromissos sociais, mantê-los para quê? Continuo com a mesma e estranha sensação, como se fosse carnal: a de que, afastando-me de minha biblioteca, deixo os livros órfãos, indefesos. Mas, na realidade, longe deles a orfandade é minha, insegurança insuportável. Pois fico solto no ar, andando em corda bamba. Senti-me assim, no meio da tarde. .

O notável José Mindlin, falando de seus livros, dizia não ser ele que tinha uma biblioteca, ela é que o tinha. Pois é isso mesmo, como uma possessão. Ou a certeza de estar num templo ou num convento, ouvindo o silêncio sábio dos fantasmas. E, por um compromisso social, fechar janelas, desligar o aparelho de som… Era o absurdo consciente: para participar do sombrio e do ruidoso, minhas mãos apagavam a claridade e silenciavam o enlevo de violinos.

No jardim, passarinhos ciscavam, uma flor de hibisco caiu ao lado da alamandra, duas flores namorando. E se brigassem, como a rosa brigou com o cravo? Senti-me ridículo entre pensamentos sem sentido. Dei as costas a tudo, entrei no automóvel. Vi o portão e, além dele, a fila de veículos, o nervosismo vindo da avenida, o funil por onde eu teria que mergulhar. Mergulhei. Lá me ia, eu, em direção ao caos.

Lixo nas calçadas, buracos nas ruas, mato mostrando abandono, ruas residenciais tomadas por caixotes e latas particulares, buzinas irrequietas, gritos, motoristas irritados querendo ultrapassar outros, carros caindo aos pedaços, velozes, um rapaz bebendo cerveja à direção, rostos amargos, palavrões, mais calçadas tomadas por entulhos e objetos de comerciantes desleixados, copos de plásticos nas sarjetas… Pensei em voltar. Mas não seria honesto: pessoas me aguardavam. E eu não entendi como elas conseguem suportar tal inferno sem ao menos reclamar.

Há alguns anos, escrevi sobre “humanitas”, a palavra com significado riquíssimo em seu sentido original: humanidade, mas, também, benignidade, cortesia, civilidade. Num sentido ainda mais profundo, “humanitas” é a própria natureza humana, o ser humano. O que tem isso a ver com a cidade? Acho que muito. Pois poderíamos ter um batalhão de homens e mulheres percorrendo a cidade com bandeiras de paz, com cartilhas de civilidade nas mãos, intervindo nas esquinas, ensinando, substituindo os ruídos malfazejos das ruas por músicas que ajudem a serenar o ânimo da população.

Isso é possível. Muitos de nós já vimos cidades exemplares com as praças centrais tomadas não por marginais, mas por grupos de artistas, de músicos, de saltimbancos fazendo graça e gentilezas. E até por policiais polidos. Não é curioso que polidez e polícia tenham a mesma raiz? “Humanitas” soaria como uma convocação à resistência. Pois, se não recuperarmos a civilidade, a cortesia, o respeito, essa noção de benignidade – seremos atropelados pelas botas dos bárbaros que já esfolam até as pedras da cidade.

Mas, em Piracicaba, o que surge, cada vez mais evidente, é o “Humanitismo” machadiano, a filosofia patética de Quincas Borba. Por aqui, os ódios de governantes, a crueldade deles, a mediocridade de lideranças más permitem o conflito e a desigualdade, o primado do darwinismo social. Ao vencedor, sobraram as batatas. E elas são amargas.

Uma cidade que é “Noiva da Colina “ merece ser tratada com mais docilidade. Pensar em “Humanitas” é pensar em humanização, em civilidade. Exercer “Humanitismo” é viver farsas. E bom dia.

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