Bisnetos de Júlio Verne

picture (88)Não costumo reler coisas que escrevi para não sofrer de constrangimento. Nem me desculpo por convicções que já tive. Tive estas, escrevi aquelas – que se há de fazer? É constrangedor saber como, ao longo da vida, pensamos ter tantas certezas e convicções. E como se esfarelam, elas. A pouco e pouco ou repentinamente. E, para constranger ainda mais, a verdade que, hoje e agora, se defende poderá, logo depois, revelar-se estupidez inominável. O triste é que, acreditando ser verdade, luta-se por ela com todas as forças.

era deixa de ser e o que não era passa a ser. Há o imutável, mas tão absoluto e pleno que – como se se escondesse – existe apenas no mais fundo do ser humano. E tão oculto e tão escondido que, quase sempre, nem sequer nos lembramos dele. O imutável e o inefável parecem irmãos siameses, devem ser. Fossem-no, poderia ser correta a contraposição: o nefando e o mutante, lado a lado. A razão é capenga. Pobre de nós, humanos, divididos entre o mutante e o imutável, entre o nefando e o inefável.

Ora, decidi alhear-me de discussões que ocupam meios de comunicação, acelerando a adrenalina de grupos: pesquisas com células-tronco, uso de camisinha, homossexualismo, aborto em caso de anencefalia, por aí. Quando fé e ciência se radicalizam, fujo. Pois – entre coisas que me constrangem – lembro-me do surgimento do ultra-som, o médico vendo, através do aparelho, o bebê no ventre da mulher. Pais ainda jovens, temíamos a novidade: não pode prejudicar o bebê, não há raios que causem deformação? Avós alertavam as filhas: “cuidado com castigo, ninguém tem o direito de ver o bebê no útero da mãe.”

Penso em Galileu, hoje, e seus acusadores. Alguns deles envergonhados, apenas alguns. Pois haveria, com certeza, muitos ainda teimando: “Já disse que a Terra é plana e não mudo de opinião.” E aí está finalmente posto o grande problema: mudar. Pois se há o imutável oculto no mais fundo do ser humano, quase tudo – em seu exterior e na razão – talvez precisasse ser mudado. E corajosamente. Revi, outro dia, desses amigos com quem se encontra raramente. Cumprimentei-o: “Que bom, como você está mudado!” Ele, quase ofendido, foi seco: “Não mudei em nada. Sou o mesmo.” Respondi baixinho: “Que pena.” E nos despedimos.

O tema dessa croniqueta é minha esquecida máquina de escrever, coitadinha. O moço que me socorre nos problemas com o computador viu-a, numa prateleira da estante. Senti que avermelhei. Nste ano de 2008, a minha Olivetti – ainda toda inteira, mas quietinha em seu canto – completa, a meu lado, 54 anos de existência. Ganhei-a do meu pai lá nos meus longínquos 14 anos. Abandonei-a, mas o que seria de mim se não a tivesse torçado pelo computador, pela internet? O que teria acontecido se eu não mudasse?

Seria bom, penso eu, estimular os adolescentes a ler o “Admirável Mundo Novo”, de Huxley, o “1984” de Orwell, da mesma forma como minha geração leu Júlio Verne e viu Flash Gordon nos gibis. Se for demais exigir sejam leitores, deveríamos narrar-lhes o que foi escrito, antevisto, previsto. O futuro chega depressa demais. E, fazendo-se presente, envelhece rápido.

Eis-nos aqui, netos e bisnetos de Júlio Verne, de Flash Gordon, de Huxley, de Orwell, contando coisas do arco da velha, navegando pela internet.Bom dia.

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