Canto do povo

pictureVi e ouvi Inezita Barroso na televisão. E deu-me, repente, não sei se saudade, se nostalgia, se ambos os sentimentos, de quando ela, há alguns anos, esteve no Engenho Central. Para vê-la, fiquei escondidinho no meio do povo. Ela estava no palco, que era todo iluminado. E eu me senti “vestido de dourado, palhaço de perdidas ilusões”. Havia cumplicidade ao ar livre, quase intimidade, e as do povo e as minhas, “nossas roupas comuns dependuradas, nas cordas, qual bandeiras despregadas, pareciam um estranho festival.” Na verdade, era a “festa de nossos trapos coloridos” e eu lá, sem saber que “nos morros mal vestidos, é sempre feriado nacional.” Naquela noite do Engenho, era feriado nacional.

Não ouvi Inezita, ouvi o povo. Não vi o povo, vi Inezita. E, então, meu coração me dizia porque “não há, ó gente, ó não, luar como aquele do sertão.” Éramos povo do sertão, na simplicidade sábia dos caipiras, povo feliz com pouca coisa, gente humilde. Aconteceu-me, então, o de “certos dias em que eu penso em minha gente e sinto, assim, todo o meu peito se apertar.” Olhando para eles foi como ver “casas simples com cadeiras na calçada e, na fachada, escrito em cima que é um lar.” Parecia ser ali mesmo, no Engenho Central, a casa de todos: “pela varanda, flores tristes e baldias, como a alegria que não tem onde encostar.”

Saí devagarinho pois, vendo e sentindo essa gente, “aí me dá uma tristeza no meu peito, feito um despeito de eu não ter como lutar. E eu, que não creio, peço a Deus por minha gente. É gente humilde. Que vontade de chorar.” Devagarinho, segurando o soluço, vi o salto escorrer, o murmúrio das águas e, no céu, aquela imensidão de “estrelas salpicando nosso chão.” Na outra margem, vi casais de namorados, a luz pálida do poste. Não sei se foi meu coração, se Inezita que cantou, sei que ouvi: “Lampião de gás, lampião de gás, quanta saudade você me traz…”

O moço, de feições rudes e corpo forte, acompanhou, com os olhos, a moça bonita passando: “Pedro Pedreiro penseiro esperando o trem… Esperando um aumento para o mês que vem… Esperando um filho para esperar também…” A voz de Inezita já ecoava de longe, emoções lançavam eletricidade no ar. “Pedro pedreiro penseiro esperando a sorte, esperando a morte, esperando o norte…”

Parei. Inezita permanecia no palco iluminado. E sorria para o povo vestido de dourado: “…que eu adoro tanto, cheia de flores, cheia de encanto.” As pessoas choravam. Não consegui ficar: “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito…” Havia modinhas no ar, apenas modinhas, até mesmo as eruditas: “Tão longe, de mim distante, onde vai, onde vai meu pensamento…” A alma das pessoas voava.

Almas são feitas de nuvens. Com cores de nuvens. Cor-de-rosa, quando alegres; brancas de paz; almas azuis de honestidade. Almas de crianças falam com as coisas, “cai, cai, balão, cai, cai balão…” De adultos, são como nuvens de crepúsculo, de entardeceres, almas marcadas de pátina, “vestidos de dourados, palhaços das perdidas ilusões”. Mas lá estava Inezita, estrela d´alva, que “no céu desponta” e a Lua, então, “anda tonta com tamanho esplendor”. O povo parecia dizer-lhe: “… tu não me sais da lembrança, meu coração não se cansa, de sempre e sempre te amar.”

Entendi o que eu fazia lá. Eu “estava à toa na vida, o meu amor me chamou pra ver a banda passar, tocando coisas de amor.” Como o povo, minha alma se fizera criança. Saindo do Engenho, ouvi o rio cantar para mim: “vem, meu menino vadio. Vem, sem mentir pra você; vem, mas vem sem fantasia que, da noite pro dia, você não vai crescer.” No Engenho Central, gente grande não entende. Ou, naqueles tempos, não entendia. Agora, não sei. Bom dia.

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