Carochinha sem ouvidos

picture.aspxIncluo-me entre aqueles que guardam coisas, na certeza, porém, de que irão desaparecer. Lembro-me do susto de um dos meus netinhos ao ver, no canto da biblioteca, minha velha máquina de escrever. O menino não sabia do que se tratava, nunca imaginou houvesse algo anterior ao computador. E os capacetes dos revolucionários de 1932? Tenho um. Ganhei-o do também saudoso D.Aníger Melilo. O capacete fora de seu pai, o advogado e, depois, padre Vicente Melilo. Tornou-se relíquia. E coleções de revistas antigas: “Fon Fon”, “Garota”, gibis, para meus netos não pensarem ser mentira a beleza dos heróis antigos.

Ora, sei da quase absoluta desimportância, para a criançada de agora, das velhas revistas infantis, das histórias de antigamente, dos contos da carochinha. Nem os meus netos querem ouvi-las e eles sabem que tenho histórias sem fim para lhes contar. Preferem heróis cibernéticos, monstros de fuças escancaradas, aqueles bichos feios e esquisitos, ação, rapidez, agitação. Quase fui vaiado quando lhes propus contar histórias do “Barba Azul”, da “Bela e a Fera”. Olharam-me como se eu fosse idiota. Acho que sou.

Histórias salvam vidas, purificam almas, alegram a existência. Crianças sem histórias tornam-se frascos vazios. Basta ver o milagre da Sheerazade, sobrevivendo ao sultão por contar mil-e-uma noites de histórias. E uma outra, do Quênia, onde a esposa do rei – toda rica e poderosa – definhava enquanto, num casebre ao lado, a mulher de um homem paupérrimo esbanjava alegria e saúde. O rei quis saber qual o segredo. O homem pobre contou: “eu a alimento com a carne da língua.” Bobalhão, o sultão mandou comprar todas as línguas de boi, de carneiro, de passarinho. A mulher permaneceu infeliz. Então, o homem pobre explicou-se melhor: “a carne da língua” era o alimento da fala, as histórias que ele contava para a amada, os contos de fadas, as anedotas, os elogios. Contar histórias enriquece a alma de quem conta e de quem ouve. Contar histórias é impedir que desapareça a própria história humana.

E a história da língua do Sol? São os bascos que contam: era uma vez uma sereia que gostava de nadar apenas em águas iluminadas pelo Sol. Se houvesse sombra, ela se escondia. À luz e ao calor do Sol, a sereia se estirava nas águas, despreocupada da vida. Aconteceu o inevitável: de tanto vê-la, de tanto cobri-la, o Sol se apaixonou. E, querendo tê-la para sempre, estendeu uma língua de luz que, então se viu, era um arco colorido. Foi o mais belo arco-íris que existiu, exatamente por ter sido o primeiro. Numa manhã especial, a sereia e o Sol se amaram tanto e tanto, amaram-se com tal sofreguidão que sete lágrimas lhes caíram dos olhos, cada lágrima de uma cor. E, assim, o arco-íris passou a existir para sempre.

Há, sim, um universo inesgotável de histórias para serem contadas. Mas crianças, hoje, estão sem ouvidos de ouvir. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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