Covardia e tolerância

picture (5)Das brincadeiras infantis, do folclore ingênuo das gentes, havia uma charada – adormecida em algum escaninho da memória coletiva – que parecia explicar tudo. Era assim, ainda me lembro:

“Cadê o toucinho daqui? /O gato comeu./ Cadê o gato? /Tá no mato./ Cadê o mato?/ O fogo queimou./ Cadê o fogo? /A água apagou./ Cadê a água?/ O boi bebeu./ Cadê o boi?/ Tá amassando trigo./ Cadê o trigo?/ A galinha espalhou./ Cadê a galinha?/ Tá botando ovo./ Cadê o ovo?/ O frade bebeu./ Cadê o frade?/ Tá rezando missa./ Cadê a missa?/ O povo ouviu./ Cadê o povo? /O povo sumiu, o povo sumiu…”

Essas coisas, escrevo-as na certeza e convicção de o mundo ter acabado, aquele das pessoas com mais de 50 anos, em todas as latitudes e longitudes. As paredes ruíram, o telhado caiu, a esperança é a de que ainda restem pedaços de alicerces. Pelo menos alguns. O massacre moral do ser humano está próximo de transformar as pessoas em excrescência.

O toucinho começou a ser comido pelo gato acho que nos 1960. A meus pais, até a morte deles, chamei-os de senhor e de senhora. Às pessoas mais velhas, também. E a mulheres jovens, quando ou se casadas. Não carrego trauma algum disso e nem precisei de terapias para me livrar de possíveis pesos da hierarquia das coisas, do respeito por pessoas. Ficávamos em fila para entrar na sala de aula e usávamos uniformes. E nós, os pobrezinhos, sentíamo-nos mais aliviados por nossas roupas feitas de remendos e de consertos não serem comparadas com as dos coleguinhas mais abonados. Os uniformes nos nivelavam, da mesma forma como as filas – criança atrás de criança, conforme a altura – nos davam um estranho mas real senso de justiça e de equilíbrio.

Quando professores chegavam à porta da sala de aula, os alunos levantavam-se, até mesmo quando já nas faculdades. E, nos grupos escolares, a professora era como que uma deusa intangível, admirada, querida e temida. A disciplina impunha respeito e despertava o temor. Temor de ser colocado para fora da sala de aula, temor de ficar de castigo, temor de ser reprovado no fim do ano, temor de outras punições acontecerem em casa, a partir do que se fizera na escola. A mestra era a senhora professora. O mestre era o senhor professor. Tios eram parentes, nada mais do que parentes. Não há educação sem dor.

Estou, na verdade, querendo dizer de minha recusa a aceitar a confusão entre tolerância e covardia moral. Ora, tolerância é uma virtude e pode ser um ideal moral. Será tolo quem pretender, em poucas linhas, emitir conceitos conclusivos de tolerância sem considerar pluralismos morais, autonomia e liberdade, um sem fim de considerações. No entanto, há questões que não admitem vãs filosofices e interpretações de conveniência. Não podemos, por exemplo, admitir a tolerância diante da corrupção de políticos e governantes; não há como ser tolerante diante de estupradores, traficantes de drogas, pedófilos. Há situações e atos intrinsecamente maus e, portanto, ser tolerante diante deles é moralmente injusto, pois estaríamos sendo coniventes com coisas moralmente más.

Nos últimos tempos, porém, insistimos em falar descompromissadamente de tolerância e de estigmatizar os que nos parecem intolerantes. Mas está mais do que passada a hora de implantarmos a tolerância zero diante do caos a que fomos jogados. Nestes últimos tempos, ser tolerante, quase sempre, é demonstração de covardia moral. O gato está roubando o toucinho e todo mundo tolera. Cadê o povo? O povo sumiu, o povo sumiu… Bom dia.

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