De recórter a repórter

As grandes e verdadeiras escolas de jornalismo sempre foram as redações de jornais. Elas não eram assépticas e individualistas como muitas que passaram, a partir já dos 1970, a existir por aí, redações burocratizadas, que tacharia de inodoras, insípidas, incolores. Havia vida nas redações, como que impulsionada pelo pipocar das antigas e hoje esquecidas máquinas de escrever. Ou pelo ruído de canetas ou de lápis em tiras de papel.

O grande desafio dos adolescentes era conseguir aproximar-se das redações, um mundo diferenciado que cheirava a tinta de impressora, sabor de café requentado. E a audácia era pedir uma oportunidade, feito aprendiz de algo que era misterioso e sedutor. A maioria dos grandes escritores, desde o século 19, começara numa redação de jornal, muitos escrevendo até mesmos romances em capítulos que se iam apresentando dia a dia. Quase não se falava em profissão de jornalista, pois jornal era um centro cultural, um núcleo nervoso de artistas e de escritores. Em Piracicaba, as redações do Diário, então dirigido por Sebastião Ferraz a partir do final dos 1940, e o Jornal, dirigido por Losso Neto, disputavam a preferência dos intelectuais. Havia tendências: mais conservadores, no Jornal de Piracicaba; os chamados progressistas, no Diário. Tanto assim foi que rotarianos agregavam-se ao JP, enquanto o Lions se agasalhava no Diário.

Comecei no JP como auxiliar de revisão. Na verdade, eu lia os textos e o revisor – um deles, o jovem Samuel Pfromm Neto – corrigia o que fora composto pelo linotipista, o profissional que transformava letras e frases em barrinhas de chumbo. Ver, hoje, uma linotipo é como estar diante de um dinossauro. Até em O Diário, transformei uma delas em peça de museu, exposta no saguão de entrada do jornal, ainda nos anos 1970m.

Devo a professores dos antigos ginásio e científico a publicação de meus primeiros escritos. Jamais me esquecerei de pelo menos dois deles: o falecido Padre Eduardo Affonso e o nosso admirável professor e advogado Benedicto Antônio Cotrim. Uma das publicações primeiras foi uma redação escolar para o Dia das Mães. Assustei-me quando a vi publicada em ambos os jornais. E, em seguida esse eterno e inesquecível João Chiarini, que quase me levou amarrado à redação do JP, tal a minha timidez de adolescente. E, de lá, para o Diário de Sebastião Ferraz, onde me tornei aprendiz de revisor com o maior de todos os revisores que já conheci, Osvaldo de Andrade, filósofo, autodidata que se transformou em grande advogado e funcionário do Estado.

Era aprender diariamente. E a primeira lição quem ma deu foi o Isidoro Polacow, redator-chefe do Diário de Piracicaba e alto funcionário do Banco do Brasil. Sebastião Ferraz achou que era hora de eu começar a ajudar na redação. E o chefe era o Polacow a quem me apresentou e que mal me olhou nos olhos. Não me esqueço. O Polacow apenas me estendeu uma tesoura e vários jornais paulistanos do dia. Não entendi, sentindo-me tolo com a tesoura nas mãos. Quase cruelmente, o Polacow me falou: “Recorte as notícias que você achar mais interessantes.” Pensei fosse zombaria, sentindo-me agredido em minha vaidade dos 16 anos, no meu sonho de ser um Davi Nasser, um Carlos Lacerda.

Quis ir-me embora, ofendido. O Ferraz, à porta, conversando com o professor Joaquim do Marco, quis saber o que acontecera. Falei-lhe da tesoura. E eles riram-se. Recortar notícias de jornais era o primeiro treinamento para se perceber a acuidade do jovem aprendiz, qual o critério de escolha de textos. Eu não sabia, mas estava sendo iniciado como recórter, meu primeiro trabalho de recortagem. A reportagem e o repórter viriam tempos depois.

Mas eram outros os tempos, tão outros que parecem perdidos na história. Eram tempos em que a escola pública era decente e formadora de jovens, fomentadora de ensino e de cultura, tempos dos liceus de artes e ofícios. Eram tempos em que a universidade era um sonho distante, com poucas opções. E jornalismo era visto como atividade de boêmios, de poetas, de românticos, algo sem futuro e sem esperança, espaço para apenas alguns talentos especiais, especialíssimo.

Cada redação era uma escola de formação de jornalistas. E, décadas depois, já no tempo das faculdades de jornalismo, cansei-me de ouvir dezenas e dezenas de jovens dizerem-me que aprendiam mais participando um mês numa redação do que freqüentando tantos anos de faculdade. Jornalismo exigia uma primeira condição, fundamental: escrever bem. Depois, com o tempo, isso se tornou secundário… E bom dia.

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