Depois de Neruda, quem há de?

Esse texto foi publicado em 19 de agosto de 1979 em O Diário. E depois selecionado para o livro Bom Dia: Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Cheguei à última página. Sabia que atravessara toda a madrugada e o dia. Humilhado e triste, fechei o livro, apertando-o no peito. As horas haviam incomodado. Ouço, hoje e na vida, apenas o apelo da alma. E ela, trêmula e cada vez mais inquieta, pediu-me que continuasse a ler, que incomodasse com a madrugada alongando-se.

Sinto-me confuso, como alguém que, ao mesmo tempo, não sabe se está bêbado, gota a gota, de licor raro e doce ou se, ávido e sedento, bebe, a goles largos, da fonte de água abundante. Neruda, meu Neruda! Por que você foi escrever o “Canto Geral” que eu não escrevi? Por isso, o sentimento de ter sido humilhado, na descoberta quase aterradora de que o verdadeiro poeta tem o sotaque de Deus.

De um Deus barbudo e feroz que vocifera, esbraveja, troveja. Deus troveja? Só Deus e Neruda podem ser sujeitos do verbo trovejar Um Deus também criança, que brinca, que ri, que goteja. Neruda também goteja. Goteia ternura e doçura, pingos de mel. Trovão e relâmpago, garoinha fina e chuva cantante — eis o Canto Geral de Neruda, o canto que me entristeceu por não ter sido eu quem cantei.

Ah! Como compreendo, agora, o ciúme dolorido do corvo que crocita diante da canção que o rouxinol destila. O ciúme do cacto imóvel e árido, diante do girassol que roda, que dança, que enternece. O ciúme do rio que apenas desliza, enquanto, a seus pés, o mar corcoveia. A cascatinha que rumoreja, a cachoeira que brame. Foi o que senti: a ausência, o vazio que descobri. Quê da minha fúria da santa e heróica cólera de Neruda? Que é de meu lirismo diante da ternura melíflua de Neruda? De que me serve tentar um canto parcial, se ele já cantou o seu Canto Geral? Humilhação e tristeza, eis o que sobrou quando o dia chegou e, talvez espantado, me viu com o livro aquecido no peito. Humilhação que foi, na verdade, conformação quase serena da andorinha que tenta voar e que vê, bem distante de si, os arabescos do condor nos espaços inatingíveis. A tristeza de quem quer cantar, mas nem sequer conseguiu, ainda, recolher desafinados acordes perdidos entre roucos e inúteis gritos, no protesto estéril de anos que também se perderam.

Onde está o meu canto geral, que não o encontro? Será que o perdi nos idos da mocidade, entre as tolas lutas contra moinhos de vento que abrigavam apenas homens pequeninos? Se o perdi, haverei, ainda, de encontrá-lo? Ou nunca o tive e, por isso, não pude cantá-lo? Neruda, Neruda! Condor e colibri, temporal e garoa, furacão e brisa suave, violência e ternura. Neruda, ladrão de meu canto, roubador de meu estro. Seja esta minha desculpa e o meu consolo: depois de Neruda, não há mais o que cantar. O mundo já tem o seu canto geral. Que eu me cale, pois. E apenas cantarole e balbucie, apenas para dizer que tentei.

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