Doença incurável

As pessoas têm lá, cada qual por si mesma, seus momentos de recolhimento. Há quem pense deitado, outros olhando estrelas, alguns dirigindo o automóvel. Outros não param de pensar, de refletir. Mesmo assim, têm, também, momentos, senão de recolhimento, de se olharem nos próprios olhos, de estarem mais no fundo de si mesmos. Os meus momentos especiais me acontecem ao barbear-me. E, certamente, por me olhar a mim próprio diretamente nos olhos. Lá me vejo por inteiro, sem poder disfarçar.

Olhando-me, pois, nos olhos, o aparelho correndo-me pelo rosto, a espuma branca, eis, então, que me dei conta da doença. Que é incurável. Indignei-me. E xinguei-me: “Idiota, burro, estúpido.” E fiquei xingando-me. Pois acabo me convencendo de que apenas idiotas, burros, estúpidos podem torcer tão apaixonadamente pelo Corinthians, esse maldito sofrimento sem fim. O Monsenhor Jorge é, também, idiota, burro e estúpido. Pois ele, que tem intimidade com as coisas sagradas, não poderia sofrer tanto e tão inutilmente por um time desavergonhado, fútil, leviano, um time sádico que, dando momentos de alegria, se vinga com sua infinita sacola de maldades.

Xinguei-me vigorosamente. E mereci. Mereço. Afinal de contas e modéstia à parte, não sou assim tão ignorante para me deixar dominar por uma estupidez sem sentido. E tenho pelo menos uma pequenina cultura que deveria permitir-me interpretar mais racionalmente os acontecimentos. Além do mais, aos 70 anos, devo, eu, esperar, de mim mesmo, um mínimo, um tiquinho, um poucochinho de sabedoria. Mas quê! Eu me porto e me comporto como um dos mais ignorantes seres humanos viventes na face da terra. Por que sofrer tanto? Para quê? Por aquele gorducho horroroso, o Ronaldo, que mais parece um paquiderme andando no campo? Sofrer pelo Corinthians, agora um verdadeiro cemitério de elefantes, por quê?

Não digo seja praga de mãe, pois minha mãe me amava e me amou muito. E, também, não sou adepto do espiritismo para acreditar esteja, eu, pagando nesta vida por alguns desatinos de vidas anteriores. No entanto, sei tratar-se de uma doença congênita, algo que nasceu comigo, maldição de deuses e demônios conjugados. Sofro pelo Corinthians desde que me lembro de ser gente. Esse insuportável Eduval Morales Fogaça, meu amigo amado de infância, atazanou-me a vida toda com seus telefonemas sádicos, rindo-se de mim e de meu sofrimento a cada derrota do Corinthians. E, ainda hoje, vejo metade da humanidade rindo-se da nação corintiana, um complô contra um povo idiotizado por um sofrimento inútil. O mundo está irremediavelmente dividido entre corintianos e anti-corintianos .(E que vá para os diabos a questão do hífen.)

Confesso não mais saber o que fazer, como alguém desnorteado na vida, sem rumo, sem ter para onde ir nem para onde voltar. Não sei viver sem o Corinthians e não consigo mais viver sendo corintiano. Nem meu marca-passo está mais suportando tanta amargura, esse descompasso do coração, que pulsa descontrolado entre a esperança e o desespero. Fico xingando o Ronaldo, o gorducho milionário, com seu passo de elefantinho. Mas, quando ele recebe a bola, fico eletrizado, o grito escapando-me do mais fundo da alma: “Vai, Ronaldo, vai, meu amor.” E ele não tem mais condições de controlar a bola. Então, volto a xingar. Para, dali a instantes, estremecer de emoção: “Agora, Ronaldo. Vai.” E ele chuta fora. Quando não cai estatelado no chão, pateticamente como paquiderme que é. O amor torna-se ódio para, em segundos, voltar a ser amor. Quem pode viver assim?

Cheguei, pois, a meu limite. A dor de torcer pelo Corinthians me consome como uma doença que me vai, dia a dia, sugando as forças. E a paixão pelo Corinthians me fortalece como se viver fosse ficar esperando não mais um campeonato, não mais a Taça Libertadores, mas uma vitória, umazinha só, mesmo com apenas um gol. Rendo-me a esse destino implacável, a um fanatismo de que me envergonho mas em relação ao qual nada posso fazer. Meu consolo é o Monsenhor Jorge. Se ele, tão perto de Deus, não perde o vício, por que haveria de perdê-lo eu?

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