Eu, candango apaixonado

CandangoNesse meu tempo de revisões e de cerimônias de adeuses, confesso espantar-me, cada vez mais, com meu mergulho em paixões. A falecida mãe de meus filhos dizia que, na minha tumba, haveria de escrever como epitáfio: “Ele não passou vontade.” Ela morreu antes e eu, dando-lhe razão, admito não ter passado vontade, conseguindo, assim, ter – e ainda manter – uma vida de intensas paixões. E com plena consciência de que, sem elas, eu não teria sobrevivido. Mesmo porque o contrário de paixão é apatia…

Fui despertado para o mundo real, saindo da inocência de minha primeira infância, aos cinco anos de idade, quando explodiu a bomba sobre Nagazáki.

A de Hiroshima já havia horrorizado o mundo. Dias depois, anunciara-se a de Nagazáki. E eu, nos meus cinco anos, fiquei aterrorizado, vendo filas de namorados e casais à porta do Cine Broadway, não conseguindo entender como, com o mundo prestes a terminar, aquela pequena multidão pudesse ir ao cinema. O mundo não acabou, mas chegava ao fim a minha inocência infantil, que pensava haver apenas um universo de maravilhas.

A guerra da Coréia me levou à leitura de jornais, com explicações que meu pai me dava diante do absurdo e da violência. E, em 1954, quando Getúlio Vargas se suicidou, meu espírito se encheu de revolta cívica e fui tomado por uma indignação de brasilidade que nunca mais me abandonou. Foi quando, logo depois, numa noite fria, gelada, indo encontrar-me com amigos no restaurante Giocondo, ouvi um discurso que vinha de um palanque armado diante da Catedral. A voz do homem era ao mesmo tempo suave e poderosa, e contagiante o ritmo das palavras. Fui ver do que se tratava e quem era o orador. Havia não mais de 200 pessoas diante do palanque, a tal meia dúzia de gatos pingados. E o orador era um então quase desconhecido Juscelino Kubitschek. Ao lado dele, estava João Pacheco e Chaves. JK, para descrédito de quase todos os paulistas, se apresentava como candidato à presidência da República.

Encantei-me com Juscelino, uma paixão política que me vinha das entranhas e que se foi avolumando à medida que a proposta de construir Brasília se tornava mais desafiadora. O já velho Estadão e a rançosa UDN – da mesma forma rancorosa como ainda fazem com o presidente Lula e como fizeram com Getúlio – desancavam Juscelino, tentando destruí-lo. Mas, enfrentando tudo e todos, JK lançou as suas metas, propôs o desenvolvimento “50 anos em cinco anos” e o Brasil passou a participar da maior epopéia cívica de todos os tempos, semelhantemente ao que começamos a assistir agora com esse Brasil novo que encanta o mundo, o Brasil liderado por um ex-torneiro mecânico.

A minha foi paixão alucinante, de fazer discursos na escola, de começar a estudar política com frenesi, de buscar entender aquele mundo novo e, acima de tudo, de querer participar, pessoalmente, da construção de Brasília. Eu quis ser candango, foi meu sonho, desejo irrefreável. E Ronaldo Gerdes, irmão de meu cunhado René, era um dos caminhoneiros que levava material de construção para a Brasília em construção, ferro do Dedini. No para-choque do caminhão, estava escrito: “Dedini – Piracicaba”. Quase implorei para o Ronaldo me levar como ajudante, sob o protesto dos meus pais e familiares. E tanto pedi que, finalmente, ele concordou e lá me fui, emocionado e feliz, pouco mais do que adolescente, aos meus 18 anos, na esperança de ajudar a construir Brasília que André Malraux, o grande intelectual francês, já chamara de “Capital das Esperança”.

Foi a mais fascinante viagem de minha vida, em meados de 1959, antes de Brasília ser inaugurada. Durante uma semana, percorremos estradinhas de terra, ora alagadas por chuva, ora desafiadoras com buracos e nuvens de poeira. Não havia onde comer, a não ser uma que outra choupana à beira de estrada, ponto de espera de adolescentes e meninas que se ofereciam para se prostituir em troca de uma carona. Dormíamos na boléia do caminhão e banho, só se houvesse algum rio ou regato próximo. Em cada parada, ouvíamos histórias de caminhoneiros abrutalhados, de nordestinos, goianos, mineiros que, em levas, iam à futura Brasília em busca de emprego.

Num caderninho preto – ainda guardado num de meus baús – fui anotando tudo, registrando cenas com uma velha máquina fotográfica, Laika, que nem sei se mais é fabricada. Algumas fotos sobraram, outras se perderam. O fato é que, já cansado e quase arrependido, numa tarde melancólica, pareceu-me que o ronco do motor do caminhão soava mais cansativo e desanimado. O Ronaldo sorria, já conhecedor dos caminhos. Subíamos uma ribanceira, o caminhão rodava lentamente, pesadamente. E, então, ao chegarmos ao cume, descortinou-se um dos mais belos espetáculos jamais vistos pelos meus olhos adolescentes: à luz do entardecer, a imensidão do planalto toda iluminada, o cerrado coalhado de construções, um formigueiro humano que, vindo de todas as partes do Brasil, tomava para si o sonho de Juscelino. Era Brasília ao entardecer. E, à noite, quando chegamos, o céu era um festival de estrelas, miríades delas, tão próximas que pareciam poder ser tocadas com as mãos.

Conversar com candangos, com prostitutas, ver homens e mulheres rudes com sorrisos nos lábios, a fé nos olhos, aquilo era como que a confirmação da profecia de Dom Bosco de que, naquele lugar, “correria o leite e o mel.” Fiz-me candango e me tornei aprendiz de pedreiro por alguns dias. E vivo, ainda hoje, o orgulho de saber que, pelo menos um metro quadrado das paredes do Hotel Nacional, os tijolos foram plantados por mim.

Quase não acredito Brasília esteja completando 50 anos. Mas, ainda agora, posso afirmar que Brasília não é esse chiqueiro criado por políticos imundos e desclassificados. Brasília continua a Capital da Esperança e as novas gerações serão testemunhas de que, mais do que um sonho, a visão de Juscelino Kubitschek, a antevisão de Dom Bosco e a genialidade de José Bonifácio de Andrade e Silva plantaram a semente deste Brasil pelo qual vale a pena lutar. Ter sido aprendiz de candango é uma das minhas medalhas da vida. E nenhum político imundo pode deslustrar essa esperança que se torna realidade. A UDN não conseguiu destruí-la. E essa mesma UDN, com outros nomes, não o conseguirá. Bom dia.

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