Falta, apenas, furar o céu de Brasilia

O texto foi publicado no dia 15 de agosto de 1979 em “O Diário” e depois selecionado para o livro “Bom Dia – Crônicas do Autoexílio e da Prisão”

Não passa de um equívoco a proclamada monotonia de Brasília. O céu é o culpado. Apenas agora – andando entre candangos e homens de gravata – é que o descobri. Todos caminham de cabeça baixa. Não falam, balbuciam. Não são capazes de gestos arrebatados, apenas acenam. Até mesmo os edifícios não se atrevem a grandes alturas. Como se os homens, as coisas, a própria natureza tivessem feito o pacto de silêncio. Homens cabisbaixos, natureza cabisbaixa. Nivelam-se, tímidos. Ou abismados.

Acredito que, abismados, receosos, talvez, de se erguerem e, então, tocarem o infinito. Porque o céu de Brasília é abismal. Envolve a tudo como se fosse uma abóbada, uma redoma, um nicho, dentro dos quais tudo fica translúcido. Amplo demais, descampado demais, uma tela imensa, azul e límpida em que nenhuma outra paisagem pode ou deve ser pintada. O próprio sol desaparece na vastidão solitária do céu de Brasília. Parece brilhar menos, ficando o ouro sob e não mais sobre o azul. Nem as nuvens se acumulam. Ficam passeando esparsas, preguiçosas, esparramadas, contentando-se em apenas furtarem um pouco da luz que lhes deixa cintilantes as bordas.

O próprio entardecer é rápido. Um último ato em que o pano cai depressa. O céu, sempre o céu, parece impedir que o próprio Sol prolongue o seu espetáculo de cores. Por isso, não há lusco-fusco. Tudo se apaga de repente. O dia se apaga de repente. E o Sol é engolido, tragado, engolfado, abocanhado pelo céu. Os horizontes retilíneos mancham-se de um sangue pálido e, sem cambiantes, tudo escurece. O azul cede lugar ao pretume, mas – também e ainda – a noite é abismal e azulada. Estranhamente, porém, as estrelas, num céu tão próximo, se revelam inatingíveis. Talvez porque ainda haja homens que gostem de contar estrelas, elas se mostram distantes. E são zombeteiras. Porque piscam, flertando com os que as olham, como se soubessem ser impossível qualquer desejo de aproximação, de contato físico. As estrelas de Brasília dão vontade de ser tomadas nos dedos e colocadas, como uma flor antiga, na lapela de um paletó também antigo.

Foi assim que descobri ser um equívoco a proclamada monotonia de Brasília. A culpa é do céu, que impera sozinho, soberano, vingando-se dos violadores do planalto desvirginado. E foi lá que me lembrei de que, antes de a capital ser inaugurada, escrevi, num arroubo poético, um espantado poema de um candango que se perguntava e, repetindo-se, se respondia: “Cadê o colibri? Num tá mais aqui!” Também os colibris fugiram. Todas as aves do céu fugiram. Não há força viva, não há reação da natureza que consigam sobressair-se ou impor-se diante daquele céu. Uma profecia diz ser Brasília a terra onde haverá de correr o leite e o mel.

Ainda acredito nisso. E haverão de correr dos horizontes de Brasília. E será num dia de chuva após elas pararem. Virá, então, o arco-íris e, com ele, uma criança atrevida. Mais ousada do que os homens, a criança entrará nas cores irisadas e, com o dedo “fura-bolos”, haverá de furar o céu de Brasília. Escorrerão, daí, o leite e o mel. Basta ter ousadia para levantar as mãos. Quando alguém o fizer, a monotonia de Brasília acabará. Pois lá, é o único lugar onde se pode ter o céu nas mãos. Pena que poucos o tenham percebido. E, desgraçadamente, entre eles, nenhum político. Bom dia.

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